Existem muitas formas de se designar o assassinato. De bala perdida a autos de resistência, chamados pelo governo do Rio de Janeiro de “homicídios decorrentes de intervenção policial”, de guerra entre facções ou de ações de grupos de extermínio. O perfil das vítimas é amplamente conhecido: são jovens negros, pobres, moradores de favelas e periferias. O que não se diz é que, independente do nome que se dê ao crime, o Estado precisa ser responsabilizado, seja pela ação direta da polícia, em suas operações diárias e à luz do dia, seja pelo tantos outros impactos de sua política de segurança pública militarizada, baseada numa lógica de guerra. Segundo os dados oficiais, somente em janeiro e fevereiro deste ano, foram 182 mortes decorrentes da ação da polícia. O Estado precisa responder por cada uma das 182 trajetórias de vida interrompidas a bala nos primeiros dois meses desse ano, bem como pelas demais que se sucederam até agora.
O que impulsiona a Secretaria de Segurança Pública a autorizar operações policiais na Maré em pleno sábado de vacinação contra a febre amarela, a invadir e matar moradores da Favela da Providência e de uma ocupação próxima, no Centro do Rio, a assassinar um jovem em Manguinhos, entre tantas outras ocorridas no último fim de semana? Qual o objetivo das incursões violentas da PM diariamente em comunidades do Rio de Janeiro? O que leva um estado que se diz falido, que parcela salário de servidores (inclusive de policiais) a investir 1,39 milhão em munição e praticamente o mesmo valor em armamento menos letal? E por fim, qual o significado do orçamento da Segurança (R$ 12,1 bilhões) ser maior do que o Educação (R$ 7,8 bi), Saúde (R$ 6,6 bi) e Ciência e Tecnologia (R$ 364,9 mi), área que financia escolas técnicas e as universidades estaduais, como a UERJ – atualmente parada por falta de recursos?
Independente da resposta que se dê, os números dizem algumas coisas e, entre elas, que o governo investe mais na morte do que na vida.
É triste constatar que a existência das pessoas vale muito pouco para o Estado, sobretudo nesse momento em que se completam 12 anos da Chacina da Baixada, neste 31 de março, quando a PM executou 29 pessoas (apenas uma sobreviveu aos atentados) entre Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense. O caso ganhou repercussão internacional por ter se configurado como a maior matança efetuada por policiais de uma só vez no Estado do Rio de Janeiro. Essa mesma Baixada Fluminense permanece como lugar emblemático, por que ainda é alvo da ação ou omissão estatal. Das 600 mortes ocorridas em janeiro deste ano, 212 foram na região, oprimida historicamente por grupos de extermínio, forças policiais e políticas.
O tempo passa, mas os alvos da violência policial se mantêm. No Complexo do Alemão, no início de março, moradores foram expulsos de suas casas para que a PM as usasse como base. Embora a polícia tentasse negar, o fato foi constatado por representantes da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, OAB e Defensoria Pública e já denunciado ao Ministério Público.
A invasão das residências seria enquanto a UPP local não conseguisse instalar um bunker (uma cabine blindada apenas com buracos para fuzis) na Praça do Samba, em Nova Brasília. Para além de carregar em si o signo da guerra, um bunker em uma área de lazer que homenageia uma cultura negra (o samba) provoca a interrupção constante das aulas na comunidade. Tal decisão reafirma o projeto genocida do Estado e a sua tentativa de controle absoluto sobre comunidades que considera “perigosas” e diz muito sobre opressões e pacificações.
A Justiça Global se junta aos movimentos de jovens, de negras e negros, mães e familiares atingidos pela violência estatal, de favelas e periferias, de resistência cultural e de afirmação da vida para exigir que o Estado brasileiro mude radicalmente sua política baseada no recrudescimento da militarização nas favelas, de aumento expressivo dos autos de resistência em mais de 70% – se comparados os números de fevereiro de 2016 (49 mortes) e fevereiro de 2017 (84 homicídios) -, de tantas violações de direitos básicos da população pobre e negra no Rio de Janeiro. A Secretaria de Segurança Pública deve ser responsabilizada por esses atos. As vítimas têm nome, idade, raça, gênero, família e uma história que foi brutalmente interrompida. A morte traz em si a carga política, de um estado que cultiva a guerra, a opressão e o genocídio.
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