A data de 30 de agosto marca o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimento Forçado.
Por Emily Maya Almeida
Os desaparecimentos forçados foram frequentemente relatados durante períodos de exceção, como nos anos da ditadura empresarial-militar no Brasil, de 1964 a 1985. A questão foi e continua sendo pautada, sobretudo, pelos familiares das vítimas no Brasil e em outros países da América Latina, a exemplo das “Mães da Praça de Maio”, movimento de mulheres que saíram às ruas em busca de seus filhos detidos e desaparecidos na Argentina do final dos anos 1970.
Hoje, 35 anos após a redemocratização, a ocultação do destino de pessoas privadas de liberdade – seja por prisão, detenção ou sequestro – por agentes do Estado continua a desafiar o Estado de Direito, especialmente nas favelas e periferias. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, o país registrou 74.061 desaparecidos, uma média de 203 desaparecimentos diários.
“Não é possível concretizar a democracia no Brasil sem adoção de políticas reparatórias, de memória, não-repetição e o devido acolhimento dos familiares das vítimas de desaparecimentos forçados. Urge a necessidade de criação de mecanismos adequados de investigação e a devida responsabilização dos envolvidos. Não podemos normalizar ou admitir que agentes públicos cometam tamanha atrocidade.”, comenta Glaucia Marinho, diretora-geral da Justiça Global.
No Brasil, a militarização e miliciarização, o racismo e os conflitos relacionados ao direito à terra e ao território é que dão os contornos aos desaparecimentos forçados na contemporaneidade.
Conheça quatro casos emblemáticos e entenda os contornos deste tipo de violação:
Chacina de Acari (RJ)
Em 1990, onze jovens – sendo sete deles menores de 18 anos -, moradores da favela de Acari, foram sequestrados de um sítio em Magé, na Baixada Fluminense, por policiais civis e militares que atuavam em um grupo de extermínio. A chacina originou o movimento “Mães de Acari”, um dos maiores símbolos na luta por justiça e memória de vítimas da violência policial no Rio de Janeiro.
Vale destacar que a Baixada é região com o maior número de desaparecidos e, segundo levantamento produzido pela Iniciativa de Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), tem ao menos 77 cemitérios clandestinos – locais conhecidos como “áreas de desova” usados por milícias, grupos de extermínio e facções criminosas para descartar cadáveres. Conheça mais sobre isso no curta-metragem recém-lançado pelo Fórum Grita Baixada, “Desova” (Brasil, 2023, Dir.: Laís Dantas).
Desaparecimento do trabalhador rural Almir Muniz (PB)
Em 2002, o trabalhador rural e defensor de direitos humanos Almir Muniz, de 40 anos, desapareceu no município de Itabaiana (PB). Sete anos depois, as investigações para apurar o seu desaparecimento foram arquivadas pelas autoridades do Estado, mesmo havendo fortes indícios de que Almir Muniz foi assassinado por um policial civil. Um ano antes, ele havia alertado a Comissão Parlamentar de Investigação da Assembleia estadual sobre a violência rural e formação de milícias privadas, tendo indicado o envolvimento de agentes do Estado na violência contra os trabalhadores rurais da região. O caso foi levado neste ano à Organização dos Estados Americanos (OEA) pela Justiça Global, a Comissão Pastoral da Terra da Paraíba e a Dignitatis.
Desaparecimento de Davi Fiúza (BA)
O jovem negro Davi Fiúza tinha apenas 16 anos quando sumiu, em 2013, depois se ser colocado em um carro sem plotagem, durante uma abordagem no bairro de São Cristóvão, em Salvador (BA), por policiais militares que pertenciam a um grupo de extermínio. Desde então, o jovem nunca mais foi visto – nem vivo, nem morto. A sua mãe, Rute Fiúza, tem seguido a sina de ter o peso da busca por investigação, justiça e reparação, ao mesmo tempo em que lida com o trauma, como tem sido com outros familiares das vítimas.
Cadê o Amarildo?
O pedreiro Amarildo Dias de Souza, 43 anos, sumiu após ser levado por policiais militares para ser interrogado na sede da UPP da Rocinha durante uma operação em 2013. A Justiça concluiu que Amarildo foi torturado até a morte. O corpo dele não foi encontrado até hoje.
Entrevista com o pesquisador Fábio Alves Araújo
Sobre esse assunto, o doutor em sociologia e autor do livro “Das técnicas de fazer desaparecer corpos: desaparecimentos, violência, sofrimento e política” (Lamparina/Faperj, 2014), Fábio Alves Araújo, concede entrevista à Justiça Global:
1) Quando pensamos em desaparecimentos forçados, logo lembramos do período da ditadura empresarial-militar. Mas como esse fenômeno é continuado mesmo na democracia atual no Brasil? Como se configura?
A prática do desaparecimento forçado não começou com a ditadura empresarial-militar, nem terminou com ela. O desaparecimento forçado é parte do problema de uma sociedade que suporta um alto grau de violência contra seus cidadãos, especialmente da violência de Estado cometida seletivamente contra populações pobres, negras, indígenas e moradoras de favelas e periferias urbanas. Nesse tido, o desaparecimento forçado se configura como uma prática de extermínio praticada pelo Estado ou com seu apoio, que envolve uma série de engrenagens e dispositivos. Extermínio, aliás, que vem sendo praticado e administrado por governos de direita e de esquerda, como fica evidente, por exemplo, se tomamos como exemplo a matança cometida pelas polícias nos estados do Rio de Janeiro e da Bahia. Se, por um lado, há evidências do estabelecimento e persistência de um padrão autoritário de gestão do conflito social com raízes em uma longa duração que atualizou arranjos político-institucionais conformados no período da ditadura (1964-1985), por outro lado, não se trata apenas de persistência. A democracia tem produzido suas próprias lógicas militarizadas de gestão da ordem pública em um contexto de neoliberalismo marcado pela reconfiguração dos mercados ilegais e criminais e suas relações com os poderes legais e formais.
2) A que outros fenômenos você associa diretamente os desaparecimentos forçados, considerando o perfil das vítimas?
O desaparecimento forçado é um crime de despojo que se impõe a corpos e territórios como um sintoma do projeto neoliberal. Se durante a ditadura o desaparecimento forçado era uma prática de terror que buscava eliminar sujeitos e populações incômodas para o regime político e econômico, não é menos verdade que isso continua a acontecer atualmente. O desaparecimento forçado continua a ser praticado contra lideranças políticas e também contra pessoas e grupos que aparentemente não representam ameaça a um sistema político, mas que serve como mensagem para populações mais amplas que são imobilizadas ou deslocadas a partir do medo e do terror. Nesse sentido, é importante chamar atenção para uma expansão da militarização da política de segurança pública e da expansão das milícias.
3) Quais são os principais desafios enfrentados pelos familiares, desde a investigação ao acesso à reparação?
São vários os desafios enfrentados pelos familiares: a dificuldade para denunciar os casos, o não reconhecimento por parte do Estado, a criminalização que sofrem quando procuram as instâncias estatais, o fato de terem que fazer denúncias por conta própria diante da inação do Estado, a falta de dados e informações. O Estado brasileiro até hoje não tipificou o desaparecimento forçado como um crime, então é muito difícil traduzir esse tipo de situação tanto para a sociedade quanto nos processos de Estado. A chacina de Acari é o primeiro caso reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como um caso de desaparecimento forçado praticado pelo Estado brasileiro durante o chamado período democrático, após 33 anos. Se não tem reconhecimento por parte do Estado da violência cometida, não é possível haver reparação.
4) No Brasil, temos casos de cemitérios clandestinos, o caso do Massacre de Acari, entre outros casos emblemáticos. O que esses casos apontam e quais são os mecanismos possíveis para enfrentar essa prática?
Esses casos apontam que o desaparecimento forçado muitas vezes é o resultado de um emaranhado de violências, das quais o sequestro ou a confiscação de cadáveres, é apenas uma parte. Um cemitério ou fossa clandestina implica o homicídio de vários sujeitos, enterrados ilegalmente, corpos que não foram identificados. Significa que a pessoa e a família foram expropriados do enterro e dos rituais mortuários. Tanto uma fossa clandestina quanto os objetos nela encontrados são documentos jurídicos, arqueológicos e históricos, importantes para saber o que ocorre numa sociedade e revela padrões criminais exercidos sobre esses corpos. Esses casos apontam um uso extremo da crueldade e da violência, significa a intencionalidade de ocultamento e, de negação da verdade e negação do acesso à justiça. Seu enfrentamento implica uma ampla mobilização social para enfrentar uma crise social e humanitária e um olhar coletivo para a construção de políticas de enfrentamento, que devem mobilizar a academia, movimentos sociais, os saberes dos familiares das pessoas desaparecidas, o uso da ciência e de tecnologias a serviço de pedagogias de busca.
O escritor acaba de ter um artigo publicado na 24ª edição da revista Radar Saúde Favela, produzida pela Coordenação de Cooperação Social da Fiocruz, com destaque a desaparecimentos forçados de pessoas, especialmente na região da Baixada Fluminense.
Acesse: https://radarsaudefavela.com.br/pagina-radar-edicao-24