“Eu sei que o que está acontecendo aqui não ganha grande repercussão por uma simples razão: porque quem está morrendo são pobres, porque quem está morrendo são pessoas pretas, porque quem está morrendo são vítimas dessa sociedade excludente que essa elite forjou no nosso País”.
A fala contundente de Manoel Mattos ecoou na sala da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre os grupos de extermínio no Nordeste. Era o mês de outubro de 2003, e o então vereador do município de Itambé viajara a Brasília para depor sobre sua contundente atuação no combate aos grupos que atuavam na fronteira entre os estados de Pernambuco e da Paraíba. Já àquela altura, Manoel Mattos não tergiversava também sobre as ameaças que sofria. “As pessoas dizem abertamente que mais cedo ou mais tarde vão me matar”, afirmou Manoel, em referência às frequentes intimidações que sofria em sua cidade natal.
A trajetória de enfrentamento de Manoel Mattos aos grupos de extermínio iniciou anos antes, ainda na virada para os anos 2000. Manoel era advogado, e atuava no assessoramento jurídico a sindicatos e trabalhadores rurais. No ano 2000, candidatou-se a vereador de Itambé, município da zona da mata pernambucana. Conquistou a cadeira com a maior votação da história da cidade.
A partir de então, o enfrentamento de Manoel aos grupos de extermínio tornou-se cada vez mais importante na sua atuação em defesa dos direitos humanos. Como advogado, já havia defendido um trabalhador rural que fora assassinado por grupos locais. Como vereador, empenhou-se na construção de uma Comissão de Direitos Humanos na Câmara Municipal, esteve presente em Comissões Parlamentares de Inquérito tanto na Assembleia Estadual de Pernambuco quanto da Paraíba, e foi um dos principais depoentes na CPI dos Grupos de Extermínio do Nordeste, instaurada na Câmara Federal.
A sua luta batia de frente com os interesses das oligarquias locais. Usineiros, políticos, toda a sorte de arranjos de estado que atuavam na sustentação aos grupos de extermínio passaram a ser alvo de denúncias contundentes. A situação tornava-se ainda mais crítica dada a localização geográfica do município de Itambé, na divisa de Pernambuco com o estado da Paraíba. Não foi difícil compreender que a fronteira trazia vantagens à execução dos crimes, muitas vezes fracionada entre os dois estados. A prática de esconder o corpo assassinado na Paraíba em Pernambuco, ou vice-versa, já era suficiente para impor entraves burocráticos tremendos às diligências policiais e a todo o processo de investigação. Somado a isso, o comprometimento das agências policiais era um entrave real à investigação dos assassinatos. Como o Estado se engajaria na resolução de um crime se suas estruturas estavam comprometidas com a sua execução?
Com o passar dos anos, as ameaças a Manoel avolumavam-se. Foi alvejado, perseguido, vítima de emboscas. Nas ruas da cidade, seu nome era citado: estava marcado para morrer. Em 2002, seu caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA), que o tornou beneficiário de medidas cautelares, obrigando o Estado Brasileiro a proteger-lhe a vida. Na decisão da CIDH, outras três pessoas foram contempladas: Rosemery Souto Maior, então promotora de justiça do estado da Paraíba, Luiz Tomé da Silva Filho e Josefa Ferreira da Silva;
Mas a exigência de proteção estatal não foi suficiente para assegurar Manoel daquilo que lhe ameaçavam. Em 24 de janeiro de 2009, aos 52 anos, foi assassinado barbaramente em uma casa na Praia de Acaú, município de Pitimbú, litoral sul do estado da Paraíba. Naquela noite, dois homens armados e encapuzados entraram na casa, e ordenaram que todos deitassem no chão, à exceção de Manoel. Segundo as testemunhas, quando todos se deitaram, um dos homens efetuou o disparo e assassinou Manoel à queima roupa.
A morte de Manoel Mattos gerou imediata repercussão nacional e internacional. Organizações de direitos humanos, como a Justiça Global e a Dignitatis, pleitearam, em conjunto com os familiares de Manoel, que as primeiras diligências de investigação contassem com a participação da Polícia Federal. A desconfiança sobre o comprometimento das agências estatais da Paraíba na consecução do crime era, então, evidente. A medida deu ensejo a um imediato pedido junto à Procuradoria Geral da República para que o caso fosse investigado, processado e julgado junto à Justiça Federal. Pleiteava-se, então, a aplicação do Instituto de Deslocamento da Competência para a esfera federal – o chamado IDC, geralmente conhecido como “federalização”.
Este foi o segundo pedido de IDC desde que o instituto foi incorporado à ordem constitucional brasileira, em 2004. O primeiro pedido foi referente ao caso do assassinato da Missionária Dorothy Stang, em 2005, no Pará, mas não foi aceito pela Justiça. No caso de Manoel, o STJ julgou procedente o deslocamento de competência em junho de 2010, tornando-o o primeiro caso de federalização no país.
Dois réus foram julgados e condenados pela Justiça Federal em 2015. O sargento reformado da PM da Paraíba Flávio Inácio Pereira, apontado como um dos mandantes da execução, e José da Silva Martins, apontado como o autor dos disparos, foram considerados culpados pelo Conselho de Sentença. “Foi um passo importante na busca de resolutividade em um caso de grave violação de direitos humanos”, salienta Eduardo Fernandes, professor da Universidade Federal da Paraíba e um dos advogados assistentes de acusação no caso.
Mas Eduardo também alerta que o caso frustrou um dos elementos centrais do instituto da federalização: a possibilidade de atuar sobre os mecanismos locais de estado que sustentam as violações de direitos humanos. “A gente sabe que poderia ter ido além, porque existe uma rede de financiadores desses casos aqui na Paraíba. Havia indícios de que poderia ter o envolvimento de outras pessoas, e isso ficou em aberto, o que deixa um pouco frustrado a essência do mecanismo de federalização. A federalização serve para lidar com essa questão, quando se tem a percepção de que as autoridades locais, por mais que não estejam totalmente envolvidas, abarcam setores, abarcam estruturas com envolvimento direto que podem atrapalhar a investigação”.
Dez anos após o assassinato de Manoel Mattos, o caso ainda é um contundente exemplo das ameaças que defensores e defensoras de direitos humanos sofrem todos os dias no pais. E a incapacidade de acessar mecanismos estruturais de estado que sustentam essas violações ainda é um triste retrato dos direitos humanos hoje no Brasil.
Saiba Mais: