Quase dois meses após a execução política da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, o Estado Brasileiro será chamado a responder perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA). A audiência foi convocada pela própria CIDH, e tem como foco a proteção de defensoras e defensores de direitos humanos no país, no contexto do bárbaro assassinato ocorrido no último dia 14 de março. Participarão da audiência a Justiça Global, a Terra de Direitos, o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH), a Conectas Direitos Humanos, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), a Comissão Externa da Câmara dos Deputados para acompanhar as investigações sobre o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, além da companheira de Marielle, a arquiteta Mônica Benício. A audiência ocorre nesta terça (8), às 12h30 (horário de Brasília), na República Dominicana, com transmissão ao vivo pelo site da CIDH.
A execução de Marielle e Anderson ganhou ampla repercussão internacional, e tornou-se um caso emblemático em um contexto de sistemáticas violações e ameaças a pessoas que defendem direitos humanos no Brasil. Os números dos últimos anos sobre a situação de defensoras e defensores de direitos humanos no país consolidam a tendência de agravamento da violência e criminalização a que estão submetidos e a que denunciam. Em 2015, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram 50 assassinatos conflitos no campo. Em 2016, o CBDDH contabilizou outras 66 execuções de defensores e defensoras de direitos humanos. Os dados oficiais de 2017 serão divulgados em julho deste ano, contudo, preliminarmente pode-se já afirmar que, no último ano, foram registrados mais de 60 casos de criminalização ou morte de defensoras e defensores em virtude da sua atuação em defesa dos direitos humanos.
Para Sandra Carvalho representante da Justiça Global, a morte de Marielle é a expressão mais evidente da violência dos que pretendem calar e intimidar todas as pessoas que defendem os direitos humanos no Brasil. “Marielle era uma mulher negra, lésbica, feminista e favelada. Sempre combateu os abusos policiais contra as populações das favelas, lutava contra o genocídio e encarceramento em massa do povo negro e questionava a intervenção militar no Rio de Janeiro. O momento é de alerta no Brasil para quem defende os direitos humanos, seja pelos retrocessos nas políticas sociais, seja pelos assassinatos e atos violentos que pretendem calar aquelas e aqueles que lutam por direitos humanos”, relata Sandra.
A violência contra a população LGBT será também um ponto crucial na denúncia contra o Estado Brasileiro. “Esta audiência é fundamental, em especial no contexto em que vivemos no nosso país. O aumento da violência contra a comunidade LGBT é claramente demonstrado pelos dados da Antra. Dados preliminares apontam um crescimento de 48% de assassinatos de pessoas transexuais e travestis em relação ao ano passado. Em 2017, esses dados já haviam dobrado em relação a 2016. O Brasil é hoje o país que mais mata LGBTs, especialmente travestis e transexuais. Estar perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos é essencial para denunciar a situação calamitosa que vivemos no nosso país”, coloca Victor De Wolf, representante da ABGTL.
Enquanto a violência contra defensoras e defensores aumenta, as políticas de proteção do Estado Brasileiro precarizam-se cada vez mais. O Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) foi implementado no país em outubro de 2004. A Política política de proteção chegou a ser implantada em nove estados, mas atualmente está presente apenas nos Estados em Pernambuco, Minas Gerais, Ceará e Maranhão, e acaba de ser retomada no Pará. Segundo Luciana Pivato, coordenadora da Terra de Direitos e representante do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos “O PPDDH nunca teve um marco legal que o concretizasse como uma política pública de Estado. Sua existência, sempre a mercê da vontade política do governo em questão”. Luciana ainda menciona a fragilização institucional do Programa com a edição de um novo decreto regulamentador, em abril de 2016, e a ineficaz proteção de coletividades sujeitas a cenários cada vez mais graves de violência. “Não existem medidas específicas voltadas para mulheres, público LGBT, quilombolas ou indígenas, por exemplo, atingidos de formas singulares. Assim, a muito a se avançar numa perspectiva coletivizada da proteção”, conclui.
Neste cenário de completa desproteção de defensores de direitos humanos, a execução de Marielle e Anderson surge como um grave alarme de uma situação de extrema brutalidade. Sua companheira, a arquiteta Mônica Benício, relembra que Marielle construiu uma “mandata” feminista, negra, favelada e LGBT, em uma Casa Legislativa dominada pelo conservadorismo. Em um ano e três meses de “mandata”, Marielle e sua equipe foram incansáveis na luta contra todas as formas de opressão. Além de presidenta da Comissão de Defesa da Mulher, ela havia acabado de se tornar relatora da recém criada Comissão de Acompanhamento da Intervenção Federal na Segurança Pública, no intuito de denunciar o genocídio do povo negro e a crescente militarização das favelas e periferias da cidade.