– País tem informações divergentes sobre meta de desencarceramento e até mesmo do número de unidades prisionais e socioeducativas
– Juiz da Corte chama Brasil de “máquina de mandados de prisão”
Números conflituosos, metas irreais e dificuldade de analisar e apresentar soluções sobre o problema estrutural no sistema de privação de liberdade. Foram essas as impressões que o Estado Brasileiro deixou em audiência realizada hoje à tarde, na Costa Rica, na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Por meio de informações prestadas pelo próprio governo, representantes da Justiça Global, do Centro de Defesa de Direitos Humanos da Serra/ES, da Conectas e Defensoria Pública do Rio mostraram como não há clareza sobre o número de unidades prisionais e socioeducativas no país, assim como o número de presos sob custódia. O crescimento da população a um ritmo de 7% por ano também foi duramente criticado, sendo lembrado que, caso seja mantido, levará o país a ter 1,9 milhão de presos em 2030. Isso cria uma situação ainda mais complicada num sistema que já apresentava, em 2014, um déficit de 250 mil vagas.
«Considerando a estimativa do número de presos até 2030, tem-se que Estado brasileiro precisaria construir, nesse período, 5.816 novas unidades prisionais, o que se revela completamente inviável. Em razão disso, é que a Corte, bem como a Comissão Interamericana e a ONU já manifestaram que as medidas para que o Brasil enfrente a superlotação devem priorizar o desencarceramento, ao invés da ampliação do sistema prisional. Contudo, à revelia das inúmeras recomendações, o Estado brasileiro segue apontando a construção de novas vagas como principal ação para, em tese, solucionar os problemas do sistema prisional. Pasmem que no relatório apresentado a esta Corte em resposta à Resolução que convocou esta audiência, a construção de presídios é apontada como medida até mesmo para reduzir a superpopulação prisional – e não a superlotação», afirmou Guilherme Pontes, advogado da Justiça Global, durante a audiência.
Quando perguntado sobre o número de mortes no sistema prisional, o Estado ofereceu informações completamente fora da realidade, informando à Corte que ocorreram 37 mortes intencionais nos presídios por ano em 2010, 2011 e 2012. Em 2013, teriam sido apenas 37. As organizações presentes na audiência lembraram à Corte que, apenas em 2013, 78 mortes foram registradas no Complexo de Pedrinhas, no Maranhão. Os números de 2014, com 443 mortes, também deixam claro como o levantamento dos anos anteriores está subestimado. Outra falha do Estado no levantamento dos dados sobre a situação real dos presídios brasileiros é que ele nem mesmo considera as unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, que, somados, tem mais de 280 mil presos, ou 40% da população carcerária.
Mesmo quando fala em metas de redução da população prisional, os dados apresentados são conflitantes. Em algumas páginas de sua resposta (que, por determinação da Corte podem ser usadas na audiência, mas não podem ser repassadas integralmente ao público) o Estado se compromete com “a redução da taxa de pessoas presas em 10%, até 2019”. Entretanto, no mesmo documento, ele também diz que vai “reduzir a população carcerária do País em 15% até 2018″. É importante destacar que estas metas também não coincidem com outro compromisso anunciado pelo Estado brasileiro: durante a Revisão Periódica Universal da ONU, o Brasil se comprometeu em reduzir em 10% a população carcerária – e não a taxa de encarceramento – até 2019.
A situação brasileira está tão grave que, num momento singular para a Corte, que se manifesta oficialmente sobre os casos apenas semanas após as audiências, o juiz Eugenio Raúl Zaffaroni questionou o superencarceramento e o que chamou de “máquina de mandados de prisão”: “Não estamos falando em termos. Temos no Brasil em torno de 700 mil presos, um pouco menos talvez. E 600 mil mandados de prisão. Somando, temos 1,3 milhão. Mas também temos, sem dúvida, mais pessoas que estão sob processo, mas não tem mandados. Não temos números, mas vamos supor um 700 mil mais. Companheiros, um em cada 100 brasileiros está envolvido em processo penal. Alguma coisa estranha está acontecendo. Isso não é normal. Desculpem minha opinião, minhas palavras, mas quero chamar atenção sobre isso. Estão pondo no centro da institucionalidade do Brasil o sistema penal, o processo penal. Não é possível”, afirmou o juiz.