A Justiça Global, junto a outras organizações e movimentos, está em Genebra (Suíça) durante a segunda sessão do grupo de trabalho da ONU que debate a criação de um tratado para responsabilizar empresas transnacionais pelas violações de direitos que cometem. Uma série de ações ocorrem na cidade como parte da campanha «Desmantelar o Poder Corporativo«, que denuncia a dificuldade de fazer com que essas grandes companhias assumam os danos causados em países nos quais não estão sediadas, dificultando as ações dos Estados e das pessoas atingidas que tentam conseguir justiça.
Este grupo de trabalho intergovernamental sobre o tratado é ligado diretamente ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. Sobre ela há grande pressão das empresas transnacionais, que buscam formas de fugir da responsabilidade por seus crimes, inclusive realizando lobby diretamente em Genebra. Por sua vez, a sociedade civil também se organizou, ocupando espaços dentro das sessões do grupo de trabalho, assim como mantendo um acampamento permanente do lado de fora da ONU, com debates, oficinas e outras ações que buscam mostrar os impactos dessas corporações, especialmente sobre a vida de povos tradicionais, como indígenas.
A advogada da Justiça Global Raphaela Lopes está na Suíça participando das atividades da campanha, ressaltando o caso das mineradoras transnacionais que atuam no Brasil e em outros países, assim como falando sobre as estratégias de recurso ao sistema interamericano (OEA) para lidar com essas violações. «Estamos com uma série de atividades que deixam bem claro como a atuação e as violações dessas empresas seguem um padrão parecido em todos os países. Compartilhamos os efeitos e buscamos construir também uma resistência em conjunto», explicou Raphaela.
No primeiro dia de sessão, segunda-feira, a sociedade civil também fez um protesto contra o governo de Michel Temer. Durante a fala do representante do Estado brasileiro, todas e todos deixaram a sala, mostrando o descontentamento de organizações e movimentos de direitos humanos com os rumos da democracia no país.
Em 2015, a campanha para desmantelar o poder corporativo estava presente durante a primeira reunião do grupo de trabalho, e organizou várias atividades para pressionar os governos a se envolver com o processo de construção de um tratado com regras vinculativas para empresas transnacionais. Um instrumento juridicamente vinculativo é essencial por dois motivos: para acabar com a impunidade das empresas multinacionais que violam os direitos humanos, e para tratar a sua influência a nível nacional, regional e internacional que cresce constantemente e sem critério pela falta de implementação de mecanismos de responsabilização.
Desastre de Mariana em debate em Genebra
Raphaela Lopes participou também, nesta quarta-feira, dia 16, de uma mesa falando sobre a situação do Brasil, em especial do desastre da barragem do Fundão, em Mariana, e das dificuldades de responsabilizar a Samarco e suas duas controladoras, a Vale e a BHP Billiton. Leia a fala da advogada abaixo:
Boa tarde a todas e todos.
Gostaria de me ater nessa fala ao maior desastre ambiental da história do Brasil, o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais e a relação da empresa Vale S/A com esse acontecimento, bem como na luta que empreendemos para que essa relação se tornasse, de fato, visível.
Como se sabe, em 05 de novembro de 2015, rompeu-se a barragem de rejeitos de Fundão, liberando uma onda de lama que percorreu 600km até chegar ao Oceano Atlântico, passando por 41 municípios nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo e matando 19 pessoas. O evento também tem sido considerado o maior da história mundial envolvendo barragens de rejeitos, nos últimos 100 anos, segundo os critérios de rejeitos despejados, distância alcançada e estimativa de danos em dólares.
A barragem era de propriedade da Samarco, uma joint venture da Vale e da BHP Billinton, duas das maiores mineradoras do mundo. As declarações do presidente da Vale, Murilo Ferreira, nos dias seguintes ao desastre, de eximir a empresa de qualquer responsabilização, combinadas com a estratégia de criar um fundo voluntário para dar conta das violações decorrentes do desastre, permite-nos chegar a algumas conclusões.
O estabelecimento da personalidade jurídica presta-se a limitar a responsabilidade dos acionistas, que constituíram uma determinada empresa. Tratando-se, portanto, de outra entidade, as pessoas físicas e jurídicas por detrás apenas podem ser consideradas corresponsáveis se abusos tiverem sido cometidos.
A Vale, a seu turno, possui um padrão de violação de direitos, tendo por isso recebido o prêmio de Pior Empresa do Mundo em 2012. Tais violações aos direitos ambientais, trabalhistas, de moradia, dentre outros, são denunciadas todos os anos no Relatório de Insustentabilidade da Vale, publicação sombra elaborada pela Articulação Internacional das Atingidas e Atingidos pela Vale, todos os anos. Ao mesmo tempo, a empresa é também uma beneficiária preponderante de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e era uma importante contribuinte em campanhas eleitorais.
Sendo assim, a ideia da Vale de estabelecer um fundo voluntário, ao mesmo tempo em que rechaça qualquer tipo de responsabilidade legal pelo crime do dia 05 de novembro de 2015 é um grande emblema do que vivemos aqui em Genebra essa semana: a preponderância de políticas de responsabilidade social corporativa impede que a devida responsabilização se dê. E a imposição obrigatória de responsabilização é imprescindível para garantir a plena reparação dos atingidos, do meio-ambiente e também para evitar a repetição de ilícitos. A efetiva atribuição de responsabilidade permite, enfim, lutar contra a arquitetura da impunidade.
Um grande desafio que tivemos como Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale, portanto, foi o de vincular a Vale e todo o seu padrão de atuação nocivo aos direitos humanos ao desastre da bacia do Rio Doce. E isto foi feito com mobilizações, audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, relatórios, eventos, protestos, dentre outras ações.
A responsabilidade da Vale e da BHP Billinton foi reconhecida em uma decisão liminar publicada em dezembro de 2015. As licenças de operações das empresas foram suspensas, seus bens congelados e elas foram proibidas de distribuir dividendos. A liminar baseou-se no art. 4º da Lei de Crimes Ambientais brasileira (Lei 9605/98), que permite a desconsideração da personalidade jurídica em caso da incapacidade financeira da empresa violadora dos direitos de arcar com todos os danos oriundos de determinado desastre ambiental. Entretanto, tal decisão foi logo revogada em prol do acordo celebrado entre as empresas envolvidas, a União e os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo.
O acordo encontra-se atualmente suspenso por decisão do Superior Tribunal de Justiça, mas percebe-se que o Estado está bastante disposto a levar adiante o acordo, para que o desastre seja logo superado e a Samarco volte a operar.
Esse caso demonstra a necessidade de se ampliar a forma de responsabilidade de empresas por violações de direitos humanos, inclusive flexibilizando princípios tão tradicionais ao Direito Comercial, como é o da personalidade jurídica. E o tratado pode ser uma via para alcançarmos esse objetivo.