Série: a PEC das Praias e a regularização fundiária

Resort a beira da praia. imagem ilustra Pec das Praias

Defensoria Pública do Rio de Janeiro desmonta argumento de relatoria no Senado: “A regularização fundiária de várias áreas na cidade não ocorre por falta de atuação dos entes responsáveis”.

Especialistas e defensores de direitos humanos têm criticado uma Proposta de Emenda à Constituição em discussão no Senado que pode privatizar o acesso às praias do Brasil, a PEC 3/2022 (conhecida como PEC das Praias), pelos potenciais prejuízos sociais, ambientais (inclusive no enfrentamento à crise climática), além de econômicos e administrativos. O texto foi apresentado pelo ex-deputado Arnado Jordy (Cidadania/PA) em 2011. 

Na tentativa de contornar a repercussão negativa no debate público, seus defensores têm argumentado que o projeto contribuiria para a regularização fundiária, permitindo, por exemplo, a transferência de 8,3 mil casas para moradores do Conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro (RJ) e para quilombolas da Ilha de Marambaia, em Mangaratiba (RJ) – cuja violação do direito à propriedade coletiva, aliás, é alvo de denúncia feita em 2009 na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. (Saiba mais). 

“Placas de Ruas da Maré”: projeto da Redes da Maré traz origem dos nomes dos logradouros na identificação das ruas | Foto: Douglas Lopes/Redes da Maré.

Entretanto, o argumento carece de uma fundamentação sólida. À Justiça Global, o Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (NUTH) esclareceu em nota que já existe na legislação atual instrumentos normativos que preveem a regularização fundiária de favelas, loteamentos, reassentamentos e conjuntos habitacionais e, portanto, “a PEC sobre as praias não parece guardar qualquer relação com esse tema”. A Defensoria lembrou que a Lei n.º 13.465, de 2017, já possibilita a regularização fundiária dessas áreas. 

“A regularização fundiária de várias áreas na cidade não ocorre por falta de atuação dos entes responsáveis no desenvolvimento dessa política pública para tornar efetivas as normas existentes”, observou a nota. 

A assessora do Instituto Terramar, Soraya Tupinambá, comenta que a medida pode agravar problemas como a transformação equivocada de prefeituras de territórios rurais em territórios urbanos a fim de urbanizar e privatizar essas áreas. 

Soraya Tupinambá é assessora do Terramar. Crédito: Reprodução/YouTube ClimaInfo.

“Hoje já há uma urbanização artificial dos territórios. Neste sentido, a transferência dos terrenos de marinha para prefeituras só vai consolidar esse processo e ameaçar o direito territorial de populações rurais e tradicionais que vivem à beira-mar, que não têm título, mas têm a posse e tem o uso secular da terra”, afirma. Ela observa que o caso de cidades como São Luiz, Belém e Florianópolis – que têm quase toda a área próxima às águas – não podem servir de base para a regulamentação de todo o território nacional. 

Ela também reforça que não é necessário alterar a regulamentação dos terrenos de Marinha para resolver a questão fundiária.

 “A regularização de favelas e projetos sociais poderiam ser feitas pela própria Marinha, como já foi feito anteriormente. O terreno de marinha é um bem fundamental para que a União possa fazer a gestão adequada de um terreno que está sujeito ao avanço do mar, a processos erosivos, a necessidades de intervir de patrimônio e a privatização atrapalha o dever do Estado de proteção das pessoas e de segurança ambiental, além da soberania nacional. Esse lugar tem ser público. Se essas áreas forem cedidas aos municípios, serão vendidas a quem tiver mais dinheiro e para quem quiser fazer negócios à beira-mar”, declarou. 

O que diz a PEC das Praias?

A emenda trata da propriedade dos chamados “terrenos de marinha” – a faixa territorial a 33 metros depois do ponto mais alto que a maré atingia no ano de 1831, e também de grandes rios, lagos e lagoas. É justamente nesse espaço que a população acessa a praia, bem da natureza de uso comum. 

Pela lei atual, esses espaços são de propriedade da União, que pode ceder o uso a instituições públicas ou particulares mediante taxa de foro e ocupação no último caso.

Mas, com a medida, a titularidade é passada para governos estaduais, prefeituras ou até vendida a pessoas e empresas, abrindo para a especulação imobiliária de grandes resorts, hotéis, cassinos e outros mega empreendimentos turísticos. Áreas que ainda não foram ocupadas ou onde são prestados serviços públicos não poderiam ser vendidos.

Segundo a Secretaria de Patrimônio da União, existem cerca de 584,7 mil imóveis do tipo registrados no país, somando 24,5 mil km². Mas estima-se que existam cerca de 3 milhões de imóveis não registrados ocupando essa faixa. A maioria (99,5%) é cedido a pessoas ou empresas, tendo rendido aos cofres públicos cerca de R$1,1 bilhão no ano passado. 

Comunidade Quilombola de Vista Alegre, em Alcântara (MA). Crédito: Ana Mendes/Imagens Humanas.

Na cidade, no campo ou nas águas, a regularização fundiária é caminho para garantir direitos

A formalização de posse de assentamentos irregulares e a titulação de seus ocupantes está diretamente relacionada ao direito à moradia, à terra, e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – além de assegurar a função social de propriedades rurais.

No meio urbano, a ausência de regularização de propriedade atinge especialmente as populações empobrecidas que vivem em assentamentos precarizados e informais. Isso se expressa em falta de acesso à infraestrutura e a serviços públicos, também na insegurança da posse – expondo moradores a despejos violentos e remoções forçadas, ações de grupos ilegais, além de processos de gentrificação.

Comunidades ribeirinhas. Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

No campo, é passo importante para enfrentar os conflitos agrários e concretizar a distribuição de terra entre trabalhadores rurais, e assim, promover a produção de alimentos básicos, o combate à fome e à pobreza, a justiça social, a interiorização de serviços básicos e a redução do êxodo rural.

No caso de comunidades tradicionais (inclusive os povos das águas, como ribeirinhos e pescadores), a garantia do direito à terra é fundamental a preservação de seus modos de vida e comunidades.

Campanha Despejo Zero identifica mais de 2 mil conflitos no país

Durante a Pandemia da Covid-19 (mar.2020 – mar.2023), ficou evidente como a garantia de moradia é fundamental para a proteção da vida e da saúde, também pela necessidade de isolamento social. Naquele período, cerca de 175 movimentos sociais e organizações se uniram na Campanha Despejo Zero, em defesa da suspensão de despejos e remoções de iniciativa privada ou pública, respaldados em decisão judicial ou administrativa, com finalidade desabrigar famílias e comunidades urbanas ou rurais. 

A campanha realizou um mapeamento nacional no qual identificou, até 2023, 2.030 conflitos pela terra e pela moradia, 42.098 famílias despejadas e outras 333.763 ameaçadas. A região Sudeste foi a que acumulou o maior número de conflitos (675) e de famílias despejadas (15.771), principalmente no estado de São Paulo.

O trabalho foi realizado pela Campanha Despejo Zero, Fórum Nacional de Reforma Urbana, Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, Habitat para a Humanidade, CDES Direitos Humanos, Observatório de Remoções, Labá Direito Espaço e Política, Observatório das Metrópoles.

Captura de tela do Mapeamento Nacional de Conflitos pela Terra e Moradia (Campanha Despejo Zero/2023).

Acompanhe mais sobre o tema na série especial sobre a PEC das Praias

A Justiça Global aproveitou a repercussão Com a repercussão do tema, a Justiça Global aproveitou para trazer o debate sobre como a regularização fundiária está relacionada à garantia de diversos direitos humanos. Acompanhe em nosso site!

 

Crédito da foto de capa: Arnaldo Sete/Marco Zero.

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