Julgamento teve participação histórica de movimentos sociais, que reforçaram a necessidade de controle externo sobre atividade policial
Nesta quarta-feira, 13/11, foi iniciado o julgamento da ADPF 635 no Supremo Tribunal Federal. A audiência foi iniciada com a leitura do relatório do ministro Edson Fachin, que levou ao plenário o histórico do processo. Em seguida, as partes envolvidas na ação fizeram sustentações orais a favor e contra à ADPF das Favelas.
A advogada e diretora adjunta da Justiça Global, Daniela Fichino, foi uma das integrantes da Coalizão – formada por mães e familiares de vítimas da violência policial, movimentos de favelas, organizações de direitos humanos, pesquisadores, ativistas e militantes do movimento negro – que defendeu a aprovação da ADPF 635. Em sua sustentação, ela explicou o porquê da urgente necessidade da existência de uma promotoria de controle externo das atividades policiais.
“Quando a gente olha pra Polícia Civil do Rio de Janeiro, a gente tá falando de seis chefes de polícia durante o governo do Cláudio Castro, sendo um deles o Allan Turnowski, que chegou a ser preso. Também estamos falando de uma Polícia Civil que, nos últimos dezesseis anos, teve quatro chefes de Polícia Civil que foram presos. Estamos falando de um chefe da Polícia Civil como Rivaldo Barbosa, que é uma das pessoas que está sendo processada perante esse Supremo Tribunal Federal pelo assassinato de Marielle Franco.”
Fichino também parafraseou o Ministro do Supremo Flávio Dino, de que o Estado do Rio de Janeiro está diante de um ecossistema criminoso. “Não estamos aqui falando de bons versus maus, ou de polícia que entra versus polícia que não entra ou da possibilidade de ver a ostensividade policial ou não. Estamos aqui tratando de uma desregulação absoluta da polícia que faz com que cada batalhão e cada unidade policial funcione de acordo com a sua própria lógica, que faz com que não haja controle e nem perícia”, enfatizou.
Daniela Fichino finalizou sua sustentação afirmando que o atual modelo de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro funciona sob a profecia da impunidade: “Se não há perícia, não há provas, se não há provas, não há condenação, portanto, nós estamos diante de uma profecia que cumpre a si mesma no Rio de Janeiro, que é a profecia da impunidade dos agentes de Estado, essa profecia de uma promiscuidade que não é ocasional, mas um projeto, um modelo de segurança pública”.
Durante a sessão, cerca de 25 representantes de partes da ação foram ouvidos, entre eles a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que também apresentou dados dos efeitos das operações policiais na vida da população – dias de escola e de consulta médica perdidos, por exemplo.
Dados desmontam fake news do governo Cláudio Castro
O advogado Daniel Sarmento, que representa o Partido Socialista Brasileiro (PSB), partido que propôs a ADPF ao Supremo em 2019, iniciou sua sustentação oral com dados que desmontaram as mentiras do governo do Estado do Rio de Janeiro sobre a ADPF 635. Uma delas sugere que as medidas propostas pela ação impediriam as operações policiais em favelas e periferias do Estado.
Diante desta afirmação, o ministro Gilmar Mendes perguntou ao advogado se o problema da segurança pública ou seu agravamento se deveu à liminar do STF, que suspendeu as operações especiais da polícia do RJ durante a pandemia, salvo situações excepcionais e justificadas, e explicou que os ministros do Supremo não entendem a situação desta forma.
O advogado respondeu à indagação do ministro com dados: “O fato é que no ano de 2019, no ano em que a ação foi ajuizada, o número de vítimas de violência policial foi 1814. No ano de 2023, foi 871, ou seja, teve uma queda de mais de 50% e as estimativas seguem no sentido de que essa queda continue e os números sejam ainda menores”, explicou.
O advogado também usou seu tempo de fala para reiterar que, embora tenha havido uma queda significativa em relação à letalidade policial no Rio de Janeiro, os números de mortes, sobretudo da população negra, ainda são altíssimos: 74% acima da média nacional e, justamente por isso, a ADPF 635 precisa ser aprovada pelos ministros do Supremo.
“Os dados comprovam de forma muito eloquente o racismo institucional: 88% das pessoas mortas no ano de 2023 eram pessoas negras. É a confirmação da letra do Emicida de que existe pele alva e pele alvo. São também pessoas jovens, pessoas muito jovens: 54,5% dessas vítimas têm entre 12 e 24 anos, mais de três quartos delas têm menos de 30 anos “, afirmou.
Controle externo da atividade policial foi o tema mais debatido da audiência
A necessidade da elaboração e implementação de mecanismos de controle externo da atividade policial também foi pontuada pelo ministro do Supremo Alexandre de Moraes. Durante a audiência desta quarta-feira, 13, o ministro afirmou que o Ministério Público tem a sua responsabilidade também na questão da segurança pública no controle externo da atividade policial. “Deveria existir no Brasil todo uma promotoria de justiça do controle externo da atividade policial. E no mínimo acompanhar in loco esses casos em que há bala perdida, morte decorrente da atividade policial”, afirmou.
Durante a fala do Procurador Geral de Justiça do Rio de Janeiro, Luciano Oliveira Mattos, o ministro Alexandre de Moraes criticou a atuação do Ministério Público e sugeriu ao Conselho Nacional do MP que fossem criadas promotorias especializadas: “Hoje o controle externo da atividade policial pelo Ministério Público no Brasil todo é uma burocracia. A Constituição deu essa oportunidade ao MP, que é importantíssima”.
Próximos passos da ADPF
O julgamento da ADPF 635 foi dividido em duas sessões. A desta quarta-feira, 13, foi concentrada nas sustentações orais favoráveis e contrárias à ADPF. A votação do mérito, no entanto, será agendada pelo Supremo para uma data posterior.
Julgamento teve participação inédita da sociedade civil
Representantes da Coalizão da ADPF 635 iniciaram o dia mobilizados, na Praça dos Três Poderes, em frente ao Supremo Tribunal Federal, onde realizaram um aulão público organizado pela articulação Complexos, enfatizando a importância da ADPF 635, mais conhecida como ADPF das Favelas.
A mobilização, realizada durante toda a manhã, teve a presença de mais de dez organizações da sociedade civil e movimentos de favelas, que pela primeira vez na história do judiciário brasileiro, estão entre os Amici Curiae da ação que, se for aprovada pela maioria dos ministros do Supremo, poderá ser considerada uma ADPF precursora no âmbito da discussão do modelo de segurança pública vigente.
Confira alguns destaques dos Amici Curiae:
Joel Luiz do Nascimento da Costa (IDPN – Instituto de Defesa da População Negra)
“A maior chacina do estado do RJ, quando 28 pessoas foram mortas na favela do Jacarezinho, na minha favela do Jacarezinho, aconteceu na atual gestão do governo do Rio”.
Eduardo Ramos Adami (Instituto de Advocacia Racial e Ambiental)
“A ADPF 635 é uma ação da liberdade de viver sem que o Estado nos tire a vida arbitrariamente”.
Marcela Teles Andrade Cardoso (Redes da Maré)
“A falta de transparência nas investigações das mortes em territórios de favelas é inadmissível em um estado democrático de direito. As escolas da Maré foram fechadas 150 vezes ao longo do último ano por conta das operações policiais. As crianças e tantos outros moradores da maré são impedidos de sonhar e de viver”.
Juliana Sanches Ramos (Rede de Comunidades e Movimentos contra à Violência)
“Não há um adequado controle externo das práticas policiais. São raríssimos os casos de assassinatos durante operações policiais que chegam ao judiciário e mesmo nesses casos não há culpabilização dos agentes e nem responsabilização das instituições envolvidas. A desconexão das instituições de segurança pública e justiça no Brasil transformam o judiciário em avalizador da violência policial. Como os movimentos sociais enfatizam: a polícia mata e o judiciário enterra.”
Rhaysa Sampaio (Instituto de Direito à Memória e Justiça Racial)
“Esse território (Baixada Fluminense), nascido de um quilombo e liderado por mulheres negras, é agora um território onde mães como Dona Ilzidete passam anos a fio procurando pelos corpos dos seus filhos sozinhas, sem o amparo das instituições que deveriam fazer o trabalho de perícia e investigação.”
Gabriel Sampaio (Associação Direitos Humanos em Rede)
“É preciso senso de urgência. É preciso considerar inaceitáveis as estatísticas, não distorcê-las. Considerar que enquanto há o maior risco de quase sete vezes mais uma pessoa negra ser morta por agentes do Estado, nós estamos brutalizando a segurança pública e brutalizando os agentes de Estado que acabam sendo naturalizados em uma missão que desumaniza parcela considerável da nossa população. Essa desumanidade é inaceitável. Há um comportamento político que favorece essa brutalização.”
Deborah Duprat (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais)
“Se chegou até aqui com esses avanços, houve redução da letalidade policial, mas é uma ilusão supor que esses avanços estão consolidados e que essa estrutura histórica que nos acompanha seja superada só com esse breve intervalo de alguns anos (da propositura da ADPF 635 até o presente momento”.
Entenda a ADPF 635
A ação foi proposta ao final do ano de 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), e conduzida em conjunto com uma série de movimentos negros, de mães e familiares de vítimas da violência policial, de favelas, além de pesquisadores e organizações da sociedade civil. Inicialmente inspirada na ação civil pública da Maré, proposta pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro para a adoção de protocolos que visassem a redução da letalidade policial durante as operações, a ADPF das Favelas mira a adoção de medidas estruturais que possam frear e reverter políticas de segurança pública historicamente pautadas no racismo e na violência contra territórios negros e favelados.
A ADPF 635 aborda uma das questões mais alarmantes do Brasil: o alto índice de mortes em operações policiais nas favelas e periferias do Estado do Rio de Janeiro. A violência, impulsionada pela chamada “Guerra às Drogas”, tem deixado um rastro de mortes, dor e insegurança, afetando diretamente as populações mais vulneráveis dessas regiões.
Dentre os pedidos formulados na ADPF 635 e, deferido de forma unânime pelo STF no ano de 2022, encontra-se a elaboração e implementação, por parte do Estado do Rio de Janeiro, de um efetivo Plano de Redução da Letalidade Policial. Tal pedido possui lastro evidente na sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, a qual condenou o Estado Brasileiro à elaboração do referido plano.
Leia aqui carta/manifesto a favor da ADPF 635 assinado por quase 300 organizações.