Brasil condenado por discriminação racial no trabalho: entenda o impacto da decisão da Corte, que menciona caso da Fábrica de Fogos

A decisão, anunciada na última quinta-feira (20), considera o país responsável por falhas na investigação de um caso de discriminação racial e de gênero contra Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira Gomes. O caso foi apresentado pelo Instituto Geledés.

 

Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira Gomes durante audiência na Corte Interamericana, em 2023. Crédito: Criola

Em março de 1997, Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira — ambas, mulheres negras —, se candidataram a uma vaga de pesquisadora na empresa privada Nipomed Saúde, em São Paulo–SP. Mas ao chegarem à entrevista, foram informadas pelo recrutador de que o cargo já havia sido ocupado e sequer tiveram suas candidaturas analisadas.

No entanto, descobriram que, no mesmo dia, outra mulher, de pele branca e com currículo equivalente ao delas, havia sido imediatamente contratada. O recrutador ainda pediu à recém-contratada que divulgasse o processo seletivo caso conhecesse “mais pessoas como ela”.

Cientes da discriminação evidente, Nascimento e Gomes denunciaram o ocorrido. No entanto, após um processo judicial longo e desgastante de mais de uma década, o caso foi encerrado em 2009 com a absolvição da instituição responsável.

Mais de 16 anos depois, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) reconheceu que a justiça brasileira falhou ao não respeitar os direitos das vítimas e ao não adotar as medidas eficazes para investigar o crime, considerando especialmente o contexto de discriminação racial. A Corte reforçou que se tratava de um caso de discriminação racial sistêmica e interseccional.

O caso foi apresentado pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra. Na decisão proferida na quinta-feira (20), a Corte apontou que atos e omissões das autoridades judiciais brasileiras – e, em certa medida, do Ministério Público – resultaram na perpetuação do racismo estrutural, também durante o processo judicial.

“O Brasil é uma sociedade violentamente racializada. O racismo e o sexismo estão presentes desde a formação do estado brasileiro”, por isso, “é urgente e necessário que o estado brasileiro, além de reconhecer a natureza sistêmica do racismo, adote medidas efetivas para desmantelar suas estruturas e garantir o direito à vida digna da população negra, com foco específico nas mulheres negras”, declarou a advogada e diretora-executiva do Geledés, Maria Sylvia de Oliveira, durante a audiência em julho, na Costa Rica.

Leia a notícia do site do Geledés.

Sentença e medidas de reparação

O texto da sentença ressalta que houve a reprodução do racismo institucional, revitimizando Neusa e Gisele durante todo o processo judicial. Para a Corte, a falha das autoridades em investigar adequadamente o caso contribuiu para a impunidade da discriminação racial, reforçando padrões estruturais de desigualdade.

Além disso, a decisão criticou a transferência da responsabilidade para as vítimas, que tiveram de provar a discriminação, ignorando o contexto racial e a obrigação do Estado em garantir a equidade na investigação. A Corte determinou que os direitos das vítimas foram violados, incluindo os direitos à vida digna, à integridade pessoal, à liberdade pessoal, às garantias judiciais, à proteção da honra e da dignidade, à igualdade perante a lei e ao acesso à justiça.

Durante a audiência pública do caso, em julho de 2023, representantes do Estado brasileiro reconheceram as violações aos direitos das vítimas no processo criminal.

Como parte das medidas de reparação, o Estado brasileiro deverá:

  • Pagar as devidas indenizações às vítimas;
  • Adotar protocolos específicos para investigação e julgamento de crimes de racismo;
  • Incluir conteúdos sobre discriminação racial nos currículos de formação do Judiciário e do Ministério Público;
  • Notificar o Ministério Público do Trabalho sobre suspeitas de discriminação racial no ambiente profissional;
  • Implementar um sistema de coleta de dados sobre acesso à justiça, com recorte racial e de gênero;
  • Criar medidas preventivas contra discriminação em processos de contratação de pessoal.

A Clínica Interamericana de Direitos Humanos do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NIDH – UFRJ), o Grupo de Estudos e Investigação sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos do Núcleo de Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (GEP-SIDH) da Sociedade Brasileira de Direito Antidiscriminatório e o Comitê de Justiça por Marielle e Anderson/Instituto Marielle Franco foram algumas das instituições brasileiras que atuaram como amicus curie no julgamento.

A Corte considerou que os projetos de vida das vítimas foram afetados pela discriminação racial estrutural e o racismo institucional, gerando intenso sentimento de injustiça, desamparo e insegurança a ponto de afetar suas aspirações, expectativas e planos de trabalho.

Em seu voto, a juíza Nancy Hernández López destacou que a Corte Interamericano tem analisado casos de danos ao projeto de vida e que a jurisprudência tem apontando a necessidade de uma forma mais ampla de reparação, para além da compensação financeira.

“Ao tratar esse tipo de dano de forma abrangente, o Tribunal destaca que seu impacto vai além das perdas econômicas ou físicas, abrangendo um ataque direto à liberdade de escolha e à capacidade de moldar o próprio destino, o que constitui uma violação de direitos humanos fundamentais”, escreveu.

Tribunal lembrou de sentença no caso Fábrica de Fogos

Ao levar o caso ao tribunal, a Comissão Interamericana lembrou que uma das principais características e legados do colonialismo europeu nas Américas foi o estabelecimento de sociedades baseadas em preconceitos raciais e culturais que se desenvolveram e se enraizaram ao longo dos séculos.

“Embora não exclusividade, a pobreza em que se encontra a maioria da população afrodescendente tornava-a a mais propensa a ser vítima de trabalho escravo”, escreveu o juiz Eduardo em seu voto sobre FerrerMac-Gregor ao mencionar o caso anterior.

“[…] O principal problema enfrentado pela população afrodescendente ao redor do mundo é o “racismo estrutural”, que consiste na organização de uma sociedade que privilegia um grupo de uma determinada etnia e/ou raça em detrimento de outro. A relação de privilégio versus exclusão se expressa por meio de um conjunto de práticas excludentes frequentes e duradouras, baseadas em um longo processo histórico de discriminação”.

Na mesma decisão, a Corte Interamericana fez referência ao caso da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus, reiterando a conexão com o racismo estrutural e a falha no acesso à justiça para pessoas negras. A Corte mencionou que já havia se pronunciado anteriormente sobre discriminação contra a população afrodescendente no Brasil, caracterizando essa discriminação como uma constante histórica.

O caso se refere ao trágico episódio ocorrido em  1999, em Santo Antônio de Jesus–BA, quando uma fábrica ilegal de fogos de artifício explodiu, matando 64 trabalhadores, a maioria negros e mulheres, incluindo crianças. O caso foi apresentado ao sistema interamericano de Direitos Humanos pela Justiça Global e o Movimento Onze de Dezembro, formado por familiares das vítimas.

Leia mais: Fábrica de fogos: ação de fiscalização é um passo para cumprimento de sentença

Em 2020, a Corte condenou o Brasil pela falha na fiscalização da fábrica e destacou o racismo estrutural presente na falta de proteção para grupos vulneráveis no ambiente de trabalho. Ao decidir sobre esse caso, a Corte Interamericana apontou a responsabilidade do Estado brasileiro em garantir que as empresas cumpram normas de segurança e que haja uma fiscalização eficaz, especialmente em contextos em que os trabalhadores estão em situações de vulnerabilidade.

Um dos pontos resolutivos determinados pela Corte foi a necessidade de regulação das empresas com relação ao respeito aos direitos humanos. Atualmente, o governo brasileiro desenvolve a Política Nacional de Empresas e Direitos Humanos por meio de um grupo de trabalho interministerial.

Os casos brasileiros dos trabalhadores da Fazenda Brasil Verde e o Leite de Souza e outros Vs. Brasil também foram destacados pelo magistrado.

 

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