
Projeto de lei foi pautado para votação nesta terça-feira (11) na Câmara Municipal de Niterói.
O Movimento Diga NÃO à Internação Compulsória publicou nova carta aberta à prefeitura de Niterói, município do Rio de Janeiro, manifestando mais uma vez preocupação em relação ao projeto de lei apresentado pela prefeitura que abre brecha para a internação sem consentimento para pessoas em situação de vulnerabilidade social. A matéria entrou na ordem do dia desta terça-feira (11) para votação na Câmara Municipal.
O Projeto de Lei n.º 47/2025 propõe a instituição da Política Municipal de Acolhimento Humanizado e Assistência Integral a Pessoas em Uso Abusivo de Álcool e/ou Outras Drogas e/ou Transtornos Mentais em Niterói, bem como estabelece diretrizes para a assistência à população em situação de rua.
Leia a carta na íntegra:
Sr. Prefeito Rodrigo Neves Barreto,
O Movimento Diga NÃO à Internação Compulsória vem, por meio desta carta, manifestar sua profunda preocupação com o Projeto de Lei n.º 47/2025, recentemente apresentado pelo Poder Executivo, que propõe a instituição da Política Municipal de Acolhimento Humanizado e Assistência Integral a Pessoas em Uso Abusivo de Álcool e/ou Outras Drogas e/ou Transtornos Mentais em Niterói, bem como estabelece diretrizes para a assistência à população em situação de rua.
Embora o projeto apresente avanços em relação às propostas anteriores, como a ênfase no acolhimento humanizado e na integração de políticas públicas, ainda persistem elementos que nos preocupam profundamente, especialmente no que diz respeito ao foco na população em situação de rua e o reforço da possibilidade de acolhimento involuntário.
Reiteramos que a internação ou acolhimento involuntário, mesmo que revestido de um discurso de “humanização”, continua sendo uma medida extrema, que deve ser aplicada apenas em casos excepcionais e individuais, conforme previsto na legislação federal. A proposta de ampliar essa prática como política pública massiva, ainda que com justificativas aparentemente bem-intencionadas, representa um retrocesso no tratamento digno e respeitoso das pessoas em situação de vulnerabilidade.
Abaixo, apresentamos as principais críticas ao Projeto de Lei n.º 47/2025, motivo pelo qual nos opomos à proposição na forma apresentada:
- Risco de violação dos direitos humanos: O projeto, ao prever a possibilidade de acolhimento involuntário, mesmo que em casos excepcionais, abre uma brecha perigosa para a violação dos direitos fundamentais das pessoas em situação de rua. A internação ou acolhimento sem consentimento deve ser uma medida de último recurso, aplicada apenas quando há risco iminente à vida do indivíduo ou de terceiros, e após esgotadas todas as alternativas de tratamento voluntário. A proposta de ampliar essa prática, mesmo que com justificativas de “humanização”, pode levar a abusos e à estigmatização ainda maior dessa população. Reforçamos que as hipóteses de cabimento da internação involuntária já estão reguladas pela legislação federal, cabendo ao município a estruturação dos serviços públicos necessários para a sua consecução.
- Foco na população em situação de rua: O projeto continua a focar na população em situação de rua como alvo principal de suas políticas, o que reforça a ideia de que essas pessoas são um “problema” a ser resolvido por meio de medidas coercitivas. Essa abordagem é discriminatória e higienista, pois trata a população em situação de rua como um grupo homogêneo, ignorando as diversas causas que levam à condição de rua, como a falta de acesso à moradia, emprego, saúde e assistência social. A política pública deve ser inclusiva e não segregacionista. É fundamental a elaboração democrática de uma política municipal destinada à garantia dos direitos (educação, saúde, habitação, cultura, segurança, trabalho etc.), das pessoas em situação de rua, o que não deve se confundir com políticas de saúde mental direcionadas a toda a população.
- Falta de estrutura na Rede de Atenção Psicossocial: Niterói ainda carece de uma rede de atenção psicossocial robusta e suficiente para atender às demandas da população. O projeto menciona a expansão da Rede de Atenção Psicossocial, mas não apresenta um plano concreto para viabilizar essa expansão, e tampouco menciona quanto será necessário ou de onde virão os recursos. Atualmente, a cidade possui apenas um CAPS AD III, e as Clínicas de Família cobrem apenas 56% do território. É urgente a criação de casas de acolhimento voltadas para pessoas com necessidades decorrentes do uso problemático de crack, álcool e outras drogas. Esses espaços devem oferecer acolhimento voluntário, cuidados contínuos e acompanhamento terapêutico e protetivo, além de serviços básicos como alimentação, higiene pessoal e lavagem de roupas, no âmbito da atenção residencial de caráter transitório. Sem investimentos robustos e planejados na rede de saúde mental, a proposta de acolhimento involuntário pode se tornar uma medida superficial e ineficaz, incapaz de resolver as questões estruturais existentes;
- Ineficácia do modelo coercitivo: A experiência nacional e internacional demonstra que medidas coercitivas, como a internação ou acolhimento involuntário, tendem a afastar as pessoas do tratamento, pois são percebidas como punitivas e não como assistenciais. Pesquisas mostram que as taxas de recaída são altas após tratamentos compulsórios, o que indica que essa abordagem não é eficaz a longo prazo. A melhor estratégia para o tratamento de uso problemático de substâncias e transtornos mentais é o fortalecimento da rede de atenção psicossocial e a garantia de acesso voluntário aos serviços de saúde;
- Alternativas mais eficazes e humanizadas: A solução para o uso problemático de drogas e para a situação de rua não passa pela internação ou acolhimento involuntário, mas sim pelo fortalecimento de políticas públicas integradas, que garantam acesso à saúde, moradia, educação, trabalho e assistência social. O projeto menciona o modelo Housing First (Habitação Primeiro), que é uma alternativa interessante, e avança ao não exigir abstinência prévia como condição para o acesso aos programas. No entanto, é fundamental que essa diretriz seja efetivamente aplicada na prática, com a devida alocação de recursos e a garantia de fiscalização e monitoramento. Além disso, é essencial investir em programas de redução de danos, capacitação profissional e geração de renda, que promovam a autonomia e a reinserção social das pessoas em situação de vulnerabilidade.
Senhor Prefeito, acreditamos que o Projeto de Lei n.º 47/2025, embora apresente alguns avanços em relação às propostas anteriores, ainda carrega consigo o risco de perpetuar práticas discriminatórias e coercitivas, que violam os direitos humanos e não resolvem de forma efetiva os problemas enfrentados pela população em situação de rua e por pessoas com transtornos mentais ou uso problemático de substâncias.
Reivindicamos, portanto, que o Senhor Prefeito e sua equipe retirem o projeto e iniciem um processo de diálogo com os servidores públicos, movimentos sociais, especialistas em saúde mental e com a população em geral para definir um plano de expansão da rede de atenção psicossocial do município. Além disso, é fundamental ser elaborada, de forma democrática e participativa, uma política pública municipal de garantia dos direitos das pessoas em situação de rua que promova a inclusão social, o acesso a direitos básicos e o fortalecimento de uma rede de apoio integral e humanizada. Salientamos a importância de que todos os passos dados observem o princípio da participação social, com o envolvimento de todos os setores da sociedade, inclusive com a garantia de audiências públicas para subsidiar a construção das propostas.
Contamos com o seu compromisso em defender os direitos humanos e em promover políticas públicas que realmente transformem a vida das pessoas em situação de vulnerabilidade.
Niterói, 11 de março de 2025.
Comitê Diga Não à Internação Compulsória:
- Associação Brasileira de Saúde Mental – ABRASME;
- Aprimora – Associação da População de Rua para Incentivo e Motivação em Rede Aberta;
- Associação dos Docentes da Universidade Federal Fluminense – ADUFF-SSind;
- Bem TV – Educação e Comunicação;
- Centro de Pesquisas e Produção em Comunicação e Emergência da Universidade Federal Fluminense – EMERGE/UFF;
- Coletivo Sementes da Democracia;
- Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal Fluminense – DCE-UFF;
- Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense;
- Fórum Permanente sobre População Adulta em Situação de Rua do Rio de Janeiro;
- Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro;
- Instituto de Defensores de Direitos Humanos – DDH;
- Instituto de Psicologia da UFF;
- Justiça Global;
- Laboratório de Agenciamentos Cotidianos e Experiências – LACE/UFF;
- Laboratório de Justiça, Ambientes, Cidades e Animais – LAJACA/UFF;
- Núcleo Estadual do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial – NEMLA RJ;
- Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares – NEPFE/UFF;
- Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Serviço Social e Saúde (NUEPESS);
- Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos – NEPHU-UFF;
- Núcleo Frei Tito de Direitos Humanos, Comunicação e Cultura;
- Observatório de Adições Bruce K. Alexander;
- Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de Niterói;
- Instituto de Saúde Coletiva da UFF.
Saiba mais: Carta aberta ao prefeito de Niterói, Axel Grael, contra a internação compulsória