
Decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos reconhece a luta de mais de quatro décadas dos quilombolas de Alcântara, no Maranhão, contra a construção de uma base militar de lançamento de foguetes. O Estado Brasileiro terá um prazo de três anos para garantir o direito de propriedade a todas as Comunidades Quilombolas de Alcântara.
ALCÂNTARA–MA, SÃO LUÍS–MA, RIO DE JANEIRO–RJ, BRASÍLIA-DF – 13/03/2024 – Nesta quinta-feira (13), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) declarou que o Estado brasileiro é responsável por violar os direitos das comunidades de Alcântara, no Maranhão, na instalação e operação de uma base militar de lançamento de foguetes no território. O Brasil foi condenado por violar diversos direitos, incluindo o da titulação coletiva do território.
O anúncio foi transmitido ao vivo no canal do YouTube da Justiça Global.
As violações guardam estreita relação com a implantação do Centro de Lançamento de Foguetes de Alcântara, ao final da década de 70 e início da década de 80. O processo de implantação, que se arrastou por diversos anos, removeu forçadamente um total de 312 famílias de 32 comunidades diferentes, gerando impactos de longo prazo nos modos de vida, com restrições à circulação, ao uso dos recursos naturais, e a atividades extrativistas e de pesca, dentre outras.
O reconhecimento da responsabilidade do Estado Brasileiro é amplo e reflete a complexidade da cadeia de violações empreendidas pelo Estado nesses mais de quarenta anos. Dentre os diversos pontos elencados na sentença, a Corte Interamericana determinou que:
- O Estado é responsável pela violação dos direitos à propriedade coletiva e de circulação e residência, por descumprir sua obrigação de delimitar, demarcar, titular e promover a desintrusão do território das Comunidades Quilombolas de Alcântara;
- Também é responsável pela violação ao direito ao território por conceder títulos individuais de propriedade ao invés de reconhecer a propriedade coletiva em favor da comunidade;
- Além disso, violou o direito das comunidades ao território ao não garantir que elas possam fazer uso pleno de suas terras, e nem oferecer medidas de compensação pelo impacto causado pelas restrições nos períodos de lançamento de foguetes;
- A Corte também afirmou que o Estado é responsável por ter descumprido sua obrigação de realizar uma consulta prévia, livre e informada às Comunidades Quilombolas de Alcântara sobre as medidas que poderiam afetá-las;
- Decidiu, ainda, que o Estado é responsável pela violação do projeto de vida coletivo das referidas comunidades;
- Como consequência de todos esses impactos, a Corte também reconheceu a responsabilidade pela violação dos direitos à proteção da família, à alimentação adequada, à moradia adequada, à participação na vida cultural e à educação;
- Foi ratificado, ainda, que o Estado Brasileiro violou o direito à igualdade perante a lei e à proibição da discriminação baseada na raça e na condição socioeconômica.
A partir do reconhecimento deste rol de violações, a Corte Interamericana determinou algumas obrigações ao Estado Brasileiro, dentre as quais se destacam:
- A titulação coletiva que reconheça os 78.105 hectares de seu território, conforme o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, datado de 2008, além de delimitar, demarcar e promover a desintrusão adequada do território;
- O Estado, enquanto não concluir a titulação, demarcação e desintrusão do território das Comunidades Quilombolas de Alcântara, deverá abster-se de realizar atos que possam afetar sua existência, valor, uso ou gozo;
- Deverá instalará uma mesa de diálogo permanente de comum acordo com as Comunidades Quilombolas de Alcântara;
- A Corte determinou, ainda, a realização de um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional em relação aos fatos e violações reconhecidos pela Corte Interamericana.
- Por fim, determinou que o Estado deve indenizar as comunidades pelo dano material e imaterial sofrido ao longo dos anos.
Ao longo de mais duas décadas de tramitação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o governo brasileiro teve diversas oportunidades de reparar as violações, mas não o fez. Os quilombos de Alcântara ainda não contam com o título de propriedade coletiva de seu território tradicional.
As violações denunciadas são decorrentes da instalação de uma base de lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira, com a remoção de centenas de famílias, bem como pela omissão do Estado brasileiro em conferir os títulos de propriedade definitiva para os quilombolas. Além das desapropriações e remoções compulsórias, a perda do território impactou o direito à cultura, alimentação adequada, livre circulação, educação, saúde, moradia, saneamento básico e transporte de uma centena de comunidades quilombolas.
Com mais de 18 mil pessoas, o município de Alcântara, na região metropolitana de São Luís, concentra a maior população quilombola do país: quase 85% das mais de 18 mil pessoas, segundo o Censo do IBGE de 2002, distribuídas em quase 200 comunidades.
Uma das primeiras regiões do Brasil a receber negros escravizados da África, às vésperas da independência em 1822, o Maranhão tinha o maior percentual de pessoas escravizadas do Império, em torno de 55%. É a partir do início do século XIX que o registro dos quilombos na região de Alcântara, cujas primeiras ocorrências datam do início do século XVIII, aumentou significativamente.
O QUE DIZEM AS PETICIONÁRIAS
A denúncia foi apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2001 por representantes de comunidades quilombolas do Maranhão, o Movimento dos Atingidos para Base de Alcântara (MABE), a Justiça Global, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão (FETAEMA), Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e a Defensoria Pública da União (DPU) – que entrou no caso em 2017. A Associação do Território Quilombola de Alcântara (Atequila) e o Movimento das Mulheres de Alcântara (Momtra) também entraram com processo na Corte Interamericana.
“Hoje é um dia histórico da luta por direitos territoriais das comunidades quilombolas de Alcântara. Depois de 40 anos de luta, a Corte Interamericana reconheceu que o Estado brasileiro violou uma série de direitos dessas comunidades. Reconheceu a atuação racista do Estado brasileiro em relação ao direito à terra, à saúde, aos modos de vida dessas comunidades. Reconhecer e reparar é o primeiro passo para a justiça. A garantia também dos títulos coletivos abre um precedente gigantesco para outras comunidades quilombolas que estão em luta para garantia de seus territórios. Outra decisão importante foi a determinação da Corte para que as comunidades de Alcântara possam opinar sobre projetos que podem ser instalados em seus territórios. A Consulta Prévia, Livre e Informada – estabelecida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – é um direito das comunidades quilombolas, povos indígenas e comunidades tradicionais. Respeitar essa determinação é um dever do Estado brasileiro. Estamos aqui na Justiça Global celebrando a decisão para que se garanta justiça, direitos plenos e uma vida feliz para todas as pessoas de Alcântara.” Glaucia Marinho, diretora-executiva da Justiça Global.
“A sentença divulgada nesta terça-feira é o reconhecimento de uma luta de quatro décadas das comunidades quilombolas de Alcântara, desde que foi implementado o Centro de Lançamentos de Alcântara, uma base militar que violou os direitos territoriais daquelas comunidades e expulsou mais de de 300 famílias de 31 comunidades diferentes. O reconhecimento que foi feito nessa sentença é da responsabilidade do Estado brasileiro em não titular o território ancestral dessas comunidades, em não garantir os modos de vida, em não proteger o direito à autodeterminação. Esses direitos foram reconhecidos e foi determinado que o Estado brasileiro cumpra com medidas para garantir o território em até três anos. A Corte vai monitorar o resultado desta sentença e também determinou que haja uma mesa de diálogo com a presença das comunidades. É um dia histórico para todos aqueles que se envolvem nessa luta! Para todos aqueles quilombolas que estão em seus territórios em busca de reconhecimento. A titulação dos territórios quilombolas no Brasil caminha a passos terrivelmente lentos, o que significa maior vulnerabilização da integridade física, dos modos de vida e dos territórios. Alcântara é quilombola e a Justiça Global se sente muito privilegiada por poder fazer parte desse momento.” Daniela Fichino, diretora-adjunta da Justiça Global.
“A sentença emitida hoje pela Corte Interamericana é uma vitória imensa para a luta quilombola no Brasil. A decisão reconheceu as violações cometidas pelo Estado brasileiro ao longo dos 40 anos do projeto de implementação da base espacial de Alcântara. Com a vitória de hoje fica reconhecida a importância da titulação do território ancestral dessas comunidades, com a indenização e o pedido de desculpas público do Estado a todas as famílias de Alcântara” Melisanda Trentin, coordenadora do programa de Justiça Socioambiental da Justiça Global
“Foi um acontecimento histórico ouvir essa sentença! Depois de 40 anos de luta, ouvir uma sentença favorável a nós, povos, a nós, comunidades, por todos esses direitos violados. Ver que o Brasil tem que cumprir a titulação do nosso território e indenizar e reparar todos os danos… Isso é muito importante. A gente fica emocionado de ver que não foram em vão esses anos de luta, de desgaste, de embate. Muitas vezes, nós estivemos cansados e até pensamos em desistir, mas a luta era maior e necessária. E hoje, embora a gente saiba que ainda não é tudo e há muito para ser feito, esse resultado é sim uma vitória importantíssima não só para Alcântara mas para todo o Brasil na luta pela garantia do direito das comunidades quilombolas”;
- Neta Serejo, quilombola e presidente do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe);
“É uma imensa vitória ter acompanhado a sentença de uma ação levada a Corte Interamericana pelas organizações e movimentos do território, que nunca desistiram e sempre resistiram. Hoje ver o nosso Estado brasileiro sendo obrigada a reparar todas essas violações a esse território. Reparação essa onde o mesmo tem a obrigação a titular o território etnico de Alcântara, reparar toda as perdas que nossos antepassados tiveram ao longo dos anos. Para nós, enquanto movimento, enquanto mulheres, é muito importante a gente ver que buscando e resistindo, a gente consegue. Não foi fácil, não é facil. A Corte agora vai acompanhar o cumprimento dos itens da sentença. Viva o território quilombola! Viva a luta de Alcântara”;
- Maria do Nascimento, quilombola e liderança do Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara (Momtra)
“É uma vitória histórica! O Estado brasileiro foi condenado por crimes e violações cometidos contra nossos quilombos e é obrigado a titular nosso território,e reparar e indenizar as vitimas de suas atrocidades. Temos aí um importante precedente de proteção de comunidades quilombolas do Brasil no Sistema Interamericano”
- Danilo Serejo, quilombola jurista especialista na Consulta Prévia e assessor do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe);
“A sentença de hoje é o reconhecimento de que as comunidades quilombolas de Alcântara estavam certas em lutar pelo seu território”.
- Davi Pereira, quilombola da comunidade de Itamamatiua, doutor em Antropologia e perito no caso.
Acesse os documentos do caso:
Comunidades Quilombolas de Alcântara–MA Vs. Brasil – Justiça Global