Em dezembro de 2013, foi emitida a Portaria Normativa n. 3461 do Ministério da Defesa que prevê a utilização do Exército para operações de garantia de lei e ordem. Criada por conta dos Megaeventos, a portaria estende o poder de policiamento constitucionalmente previsto para os militares, podendo atuar em alguns casos que elenca como ameaças em seu texto, como: ações de organizações criminosas contra pessoas ou patrimônio, bloqueio de vias públicas de circulação; depredação do patrimônio público e privado; distúrbios urbanos; invasão de propriedades e instalações rurais ou urbanas, públicas ou privadas; entre outros. Inicialmente o texto, que após forte pressão social terá seu conteúdo alterado, previa “movimentos e organizações” como forças oponentes aos militares nestas operações, sendo possível apontar a clara destinação para repressão dos movimentos sociais. A Presidenta Dilma Rousseff já havia afirmado que se necessário, faria uso das forças armadas e o Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro também já havia afirmado que o Exército seria acionado para a ocupação do conjunto de favelas da Maré – recentemente ocupada pelo BOPE, a partir do anúncio de que ali será instalada uma Unidade de Polícia Pacificadora. O governador do Rio de Janeiro anunciou ainda que já foi aprovado pelo Governo federal pedido feito pelo estado para a instauração da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) na Maré .
A ocupação aconteceu, em mais uma operação espetaculosa, com início na sexta-feira, dia 22 de março, envolvendo 1.180 agentes do Batalhão de Operações Especiais, 132 agentes da Polícia Civil, 21 blindados da Marinha e aviões não tripulados das Forças Armadas e da Polícia Federal[1]. No dia 29/03, véspera da ocupação, o juiz da 39ª Vara Criminal da capital expediu mandado coletivo de busca e apreensão, autorizando a Polícia Civil a entrar nas casas dos moradores. Houve denúncias de duas pessoas mortas a facadas na quarta-feira (26/03) e registros de duas mortes provocadas por disparos e armas de fogo ontem (domingo – 30/03). Há registros de mais de 100 detenções de moradores e o saldo das violações ainda está sendo calculado.
“Avanço”, “território”, “guerra”, “enfrentamento”, “inimigo”, são as palavras mais usadas para narrar e justificar as ações de uma política de segurança pública que de fato só pode ser referida como “pacificadora” se lembrarmos que esse é o termo que dá nome à mais alta comenda do exército: a Medalha do Pacificador, em referência a Duque de Caxias, dizimador dos movimentos revolucionários na época do Império. (Isso sempre é lembrado por Cecília Coimbra). Vale lembrar que, após pouco mais de cinco anos de implementação das UPPs, contabiliza-se 24 moradores mortos em favelas que receberam essas unidades (se contarmos a chacina do Juramento).
Trata-se da continuidade de uma militarização mortífera que na verdade sempre esteve presente na história do Brasil. Uma militarização que teve seu ápice na ditadura civil-militar (1964-1985), e que nas últimas décadas ganhou contornos de justificativa para a sanguinária “guerra à drogas”.
A Polícia Militar surge primeiramente no Brasil como uma guarda para proteger a família real, no início do século XIX. Mais tarde ela se consolida como polícia justamente após a abolição da escravatura – o que denuncia o racismo institucional já em sua origem. Não é por acaso, portanto, que até hoje ela continue protegendo elites e “combatendo” pobres, em sua maioria negros. A corporação militar, por excelência, adota uma lógica bélica, que pressupõe a existência de um inimigo. No caso dos países que travam guerras com outras nações, esse inimigo é externo; em casos como o do Brasil, o inimigo é interno. Com o grande fortalecimento do militarismo durante a ditadura civil-militar (1964-1985), constataremos que o inimigo, à época, era localizado nos opositores daquele regime, sendo aterrorizados, criminalizados e duramente violentados nesse período. Já hoje, esse inimigo é identificado naqueles apontados como operadores do comércio de substâncias selecionadas como ilícitas, sob justificativa da já mencionada “guerra às drogas”. Mas, como nos lembram os antiproibicionistas, uma guerra nunca é contra coisas (as drogas, nesse caso), e sim contra pessoas. Pessoas que têm cor e origem específicas. Na prática, se traduzem em jovens, negros, moradores de favelas e periferias, que, há décadas, compõem a maior parcela das vítimas de violência policial.
Atualmente, como sabemos, alçou-se à posição de inimigo interno também aqueles que participam de manifestações de rua no Brasil. Na última sexta-feira, dia 28, um conjunto de organizações da sociedade civil que inclui a Justiça Global levou a uma audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA mais de 200 casos de violações de DH ocorridas durante os protestos de 2013 e 2014. Os dados incluem violência policial, criminalização dos manifestantes, uso de leis e iniciativas legislativas de exceção e repressão a jornalistas e a advogados. Nesse contexto de grande investimento em armamentos e veículos de guerra para conter as manifestações, a persistente separação entre manifestantes pacíficos e vândalos utilizada pelo Estado e meios de comunicação hegemônicos apenas serve para reforçar essa lógica e justificar as violações do Estado.
É importante observar, no entanto, que essa mortalidade atravessada por um recorte de raça atinge também a própria polícia, em sua linha de frente. Também morre quem atira: os soldados, que não por acaso são mais uma vez os negros, pobres e moradores de regiões mais desfavorecidas, empregados em um trabalho extremamente precarizado nessas corporações caracterizadas por grandes distâncias de poder e punições extremamente severas.
Na Revisão Periódica Universal realizada em 2012 pela ONU Organização das Nações Unidas, em Genebra, o Brasil recebeu 170 recomendações da Comissão de Direitos Humanos. A de número 60, feita pela Dinamarca, indicava que o Brasil trabalhasse para a supressão da Polícia Militar como passo fundamental na redução do número de execuções extrajudiciais praticadas pela polícia. Essa foi a única expressamente rejeitada pelo Estado brasileiro, que acatou 159 das recomendações. A justificativa foi a de que ela não poderia ser aceita “à luz da disposição constitucional acerca da existência de forças policiais civis e militares”.
Ora, os caminhos para a desmilitarização já existem: medidas legais e institucionais, como Projetos de Emendas Constitucionais (PECs) sobre o tema estão tramitando no Congresso (ainda que precisem de ajustes). Recentemente, um pedido de audiência pública foi aceito na Comissão de Direitos Humanos do Senado. Contudo, é necessário que o Estado Brasileiro demonstre empenho e vontade política em promover esse inadiável debate ampla e publicamente, além de providenciar medidas concretas e efetivas nessa direção.
Muitos pensam que desmilitarizar significa abolir toda e qualquer força de segurança pública. Temos polícias civis e guardas municipais, que teoricamente não são militarizadas, mas que reproduzem absolutamente essa lógica em alguns setores ou ações. É importante lembrar, ainda, que há muito da condescendência do poder judiciário, do Ministério Público e da sociedade em geral para com esta postura. A desmilitarização se trata menos de acabar com uma corporação específica da PM, e mais de enfrentar um modo de funcionamento – que por sua vez atravessa mais do que uma corporação específica: passa por modos de governar, de trabalhar, de viver.
Nesses 50 anos do golpe, não restam dúvidas sobre a importância de desmilitarizar a polícia em um dos poucos países nos quais essa corporação ainda é vinculada às Forças Armadas e seu Estatuto Militar. Inseparável disto está a urgência em abrir todos os arquivos da ditadura. “Lembrar para que não se repita”, é o que sempre dizemos em relação ao terrorismo de Estado nos anos de ditadura. Mas no que se refere a violações de direitos humanos e militarismo, elas já vêm se repetindo há tempo demais. Lidar efetivamente com essa história que não terminou é crucial para que enfim, possamos modificá-la.