Absolvição de executivos da Samarco, Vale e BHP Billiton dá aval para empresas continuarem violando direitos

Equipe de Justiça Socioambiental e Climática da Justiça Global comenta sobre a decisão da Justiça Federal sobre o rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana–MG. As empresas Samarco, Vale, BHP Billiton e VogBR, além de 22 pessoas indiciadas no processo criminal, foram absolvidas.

Por Melisanda Trentin, Emily Maya Almeida e Geovanna Januário

A absolvição dos gestores e diretores das empresas Samarco, Vale e BHP Billiton na ação criminal na justiça federal pelo rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana–MG, em 2015, causou revolta entre os atingidos e as atingidas pela mineração na Bacia do Rio Doce e reforça a impunidade de empresas que violam direitos humanos.

A decisão, da juíza Patrícia Alencar Teixeira de Carvalho, do Tribunal Regional Federal da 6ª Região, foi publicada na madrugada de 14 de novembro de 2024, com a argumentação de ‘ausência de provas para estabelecer a responsabilidade criminal’ direta e individual de cada réu. Alencar pontuou que o processo “pouco contribui para evitar novos desastres dessa natureza”.

Considerado o maior desastre socioambiental do Brasil e um dos mais significativos do mundo, o evento resultou em 19 mortes reconhecidas, incluindo 14 trabalhadores da mineração e cinco moradores do distrito de Bento Rodrigues, duas delas crianças, e a perda de uma gestação. Mais de 39 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração foram despejados na Bacia do Rio Doce, desalojando centenas de famílias, até a foz no Espírito Santo.

A denúncia, de 2016, de autoria do Ministério Público Federal, acusou 21 pessoas ligadas à Samarco e às suas controladoras, Vale e BHP Billiton, do crime de homicídio qualificado e diversos crimes ambientais. A empresa VogBR, consultoria responsável pela declaração de estabilidade da barragem emitido em 2015, também foi indiciada no processo por crime ambiental.

Desde então, alguns dos crimes ambientais citados já prescreveram e prevaleceu a tese de não haver relação entre as condutas individuais e o rompimento da barragem em Mariana. Na nova decisão, a juíza alega que os documentos e testemunhas “não responderam” quais condutas individuais contribuíram de forma direta e determinante para o rompimento da barragem e que os indícios apontavam que as mortes foram consequência do crime de inundação.

Com 15 dias após a assinatura do acordo de repactuação, efetivado sem a participação das pessoas atingidas, a absolvição foi vista como mais uma perda de direitos para as vítimas da Bacia do Rio Doce.

O acordo de repactuação limita as vítimas ao conformismo e à desistência de ações judiciais, enfraquecendo sua luta por justiça e dignidade, bem como renegocia todas as medidas, programas, responsabilidades e obrigações assumidas pela Samarco, BHP Billiton, Vale e pela Fundação Renova em decorrência do rompimento e seus desdobramentos.

A absolvição dos gestores reforça a impunidade e retira da cena as estruturas corporativas que sobrepõem os lucros em detrimento da vida e do meio ambiente. Também evidencia a insuficiência dos mecanismos e lacunas jurídicas no Brasil e também globais de responsabilização de empresas por violações de direitos humanos.

A repetição da tragédia-crime três anos depois, no Córrego do Feijão, em Brumadinho, na barragem da mesma empresa, a Vale atestou que o rompimento ocorrido em Mariana não foi uma eventualidade, muito menos isolada. Resulta de modelo de desenvolvimento extrativista, em que nem os padrões mínimos de segurança e de governança são respeitados e com o aval de um Estado, que ora se omite, ora flexibiliza os marcos regulatórios existentes.

Não bastou que o caso fosse um dos maiores desastres ambientais – por ação humana, é preciso enfatizar – para que as autoridades reconhecessem a necessidade de fortalecer os esforços para prevenir futuros desastres, em plena crise climática. O precedente da negligência corporativa, ao contrário, encoraja as empresas a agirem sem o devido cuidado, na certeza que as consequências se limitarão às perdas, quando muito, econômicas, dando a elas a escolha de quais vidas não merecem ser protegidas.

Mais do que isso, a decisão agrava a vulnerabilidade das comunidades atingidas, que já enfrentam dificuldades para reconstruir suas vidas, com a falta de acesso pleno à moradia, à água potável e a recursos básicos, enquanto os danos psicológicos e culturais permanecem ignorados. A assinatura do recente acordo de repactuação, sem a participação efetiva das vítimas, simboliza uma tentativa de silenciamento dessas vozes.

Diante desse cenário, é urgente uma mobilização mais ampla, envolvendo não apenas os/as atingidos, mas toda a sociedade civil, para demandar mudanças estruturais. É urgente o fortalecimento de marcos normativos nacionais e internacionais que garantam a responsabilização de empresas, assim como a promoção de modelos econômicos e mais justos.

No Brasil, embora a Constituição Federal de 1988 estabeleça o direito ao meio ambiente equilibrado como essencial à qualidade de vida e esteja assegurada a responsabilização penal e administrativa por danos ambientais, não há legislação específica sobre direitos humanos no contexto empresarial.

Iniciativas mais recentes, como o processo de negociação de um tratado vinculante sobre direitos humanos e empresas, no âmbito da ONU, ainda enfrentam resistência de vários países e corporações. Esse tratado busca obrigar empresas a proteger direitos humanos em toda a sua cadeia de valor, permitindo que comunidades afetadas tenham acesso à reparação integral em suas jurisdições de origem ou no país-sede da empresa.

Ao nível regional, o Brasil também é signatário de tratados como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que assegura o acesso à justiça para as vítimas de violações. Entretanto, esses dispositivos têm aplicação limitada no contexto empresarial, e a responsabilização frequentemente se restringe ao âmbito civil, com foco em reparações financeiras, deixando de lado a responsabilização penal e a reforma estrutural das práticas corporativas.

Sem uma legislação adequada e sem a aplicação efetiva das normas existentes, desastres como o rompimento da barragem de rejeitos da mineração na bacia do Rio Doce continuarão a se repetir. É fundamental que o Brasil construa sua política pública em matéria de direitos humanos e empresas e que vítimas de violações possam acessar a justiça de maneira efetiva.

A impunidade, como no rompimento da barragem de rejeitos da mineração na bacia do Rio Doce, não apenas perpetua a injustiça, mas também envia um sinal perigoso de permissividade em relação à atuação empresarial violadora de direitos. Apenas com mudanças estruturais, que combinem legislações nacionais efetivas e mecanismos internacionais vinculantes, será possível construir um sistema em que a vida humana, o meio ambiente e a dignidade sejam colocados acima do lucro. Sem isso, os crimes relacionados à atividade mineral continuarão a assombrar o Brasil e o mundo, enquanto vidas humanas e ecossistemas inteiros permanecem à mercê da ganância corporativa.

Crédito da capa: Ricardo Stuckert/Fotos Públicas/Agência Senado.

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