
A consulta prévia, livre, informada e de boa-fé é um direito de povos originários e comunidades tradicionais previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
No último sábado (29), a comunidade quilombola de Córrego Frio, localizada na Zona Rural do Município de Paulistas–MG, celebrou um momento histórico com o lançamento oficial do seu Protocolo de Consulta Prévia. O documento é resultado de um processo coletivo e visa garantir que a comunidade seja devidamente consultada sobre projetos e iniciativas que possam impactar seu território e modo de vida, conforme estabelecido na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“O Protocolo de Consulta Prévia do Quilombo Córrego Frio reflete a autonomia da comunidade na definição de seus próprios mecanismos de diálogo com o Estado e outras instituições. Ele estabelece diretrizes para que qualquer empreendimento ou política pública que afete o território quilombola respeite os tempos, tradições e formas organizativas da comunidade”, diz o texto.
Acesse aqui o documento.
Durante o lançamento, lideranças comunitárias destacaram a importância do protocolo como um instrumento de resistência e garantia de direitos. A liderança da comunidade Marlene Mateus de Sousa comemora que a construção do documento promoveu maior amadurecimento político do quilombo.
“O processo de elaboração do protocolo transformou a comunidade. A comunidade teve uma boa participação em todas as diferentes oficinas feitas ao longo da construção e isso trouxe um amadurecimento político, com uma compreensão, por exemplo, da necessidade de adequação da associação e do estatuto, surgiram lideranças dispostas a estarem na diretoria desta associação. E a expectativa da luta daqui para frente é continuar. Dando um passo de cada vez. Não é fácil, né? Essa luta é trabalho de formiguinha mesmo”, disse.
“Este protocolo é um marco na nossa luta pela autodeterminação e preservação da nossa cultura. Agora temos um instrumento formal que fortalece nossa voz frente a decisões que possam impactar nosso modo de vida”, afirmou Josiane Maria Pascoal, da Comissão Quilombola da Bacia do Rio Doce.
Ela acrescenta que a construção também fortaleceu os laços comunitários e deu mais credibilidade as lideranças locais: “Vimos o quanto evoluiu a articulação e o diálogo com essa construção, as pessoas estão conversando mais. Foi muito importante porque a comunidade participou e todos se sentiram incluídos. É uma oportunidade de contar a própria história. Resgatar as memórias de tudo que estava acontecendo. Parece que nunca tinha sido ouvidos. É um resultado de uma conquista de uma luta muito grande”, contou.

O evento contou com a participação de representantes de organizações sociais, pesquisadores/as, entidades de apoio às comunidades quilombolas e autoridades públicas, como deputados/as e vereadores/as, representantes do Ministério Público Federal e mesmo do poder municipal, que reconheceram a relevância do protocolo como um avanço na defesa dos direitos territoriais das populações quilombolas no Brasil.
A elaboração do documento foi fruto de um processo de construção coletiva, pela Comunidade Quilombola de Córrego Frio, Associação Quilombola do Córrego Frio (AQCOF) e Comissão Quilombola da Bacia do Rio Doce; e teve apoio da Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale (AIAAVs), Observatório de Conflitos e Confluências do Rio Doce (OCDOCE), Fondo de Acción Urgente (FAU), Justiça Global, Justica nos Trilhos, o Grupo de Pesquisa e Extensão sobre Conflitos e Confluências Rurais da Bacia do Rio Doce da Universidade Federal de Itajubá e o Grupo de Estudos de Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG).
A esperança de um efeito cascata
Josiane conta que o processo de elaboração do documento envolveu escuta e participação amplas. E serviu de referência para outras comunidades quilombolas da Bacia do Rio Doce. A Comissão tem hoje representantes de mais de 70 quilombolas em 31 municípios. “Ter um protocolo é um avanço muito grande para as comunidades quilombolas daqui, que vêm enfrentando, por exemplo, assédio da mineração e do eucalipto. Então, é mais uma forma de assegurar as lideranças e a comunidade”.
Durante 12 meses, foram realizados diversos debates e oficinas. A Justiça Global contribuiu com oficinas de proteção integral a defensoras e defensores de direitos humanos e sobre a Convenção 169 da OIT.
“A elaboração desse protocolo comunitário é muito importante porque coloca em destaque a população quilombola como sujeito de direito da Convenção 169 da OIT. No caso do Quilombo Córrego Frio, pudemos contribuir tanto nas questões de proteção integral a defensores/as de direitos humanos quanto na proteção dos direitos territoriais”, disse Melisanda Tretin, coordenadora do programa de Justiça Socioambiental da Justiça Global.

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Além dessas, houve também espaços dedicados à memória, com escuta das matriarcas e dos patriarcas da comunidade, e outros sobre arte e pertencimento, voltadas para a juventude. Também houve oficinas voltadas para a gestão territorial, sobre educação e saúde quilombola, cartografia social, segurança, genealogia, entre outros. Um grupo de pesquisadores e advogados contribuiu no suporte técnico. Todo o processo e o resultado, inclusive a apresentação visual do documento, foi aprovado em assembleia.
A mobilização também atraiu a atenção de novos apoiadores e que novos projetos têm surgido, por exemplo, em parceria com o Instituto Federal de Minas Gerais.
Agora, a Comissão das Comunidades Quilombolas da Bacia do Rio Doce vai buscar parceiros para fazer o protocolo de outros quilombos da região. “A gente que tá na ponta às vezes fica com medo, se sentindo sozinho, se sente ameaçado todo o tempo por brigar por seu território. Quando termos apoio, nos sentimos fortalecidos para continuar na luta”, reflete Josiane.
Liderança do Córrego Frio foi acionista crítica da Vale
Um dos fatores impulsionadores para mobilizar a construção do protocolo de consulta prévia foi o fato de que a liderança quilombola do Córrego Frio Marlene Mateus de Sousa passou a sofrer assédio por representantes das mineradores após se tornar acionista crítica da Vale S.A. em 2023, após uma mobilização em conjunto com a Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale.

Com direito de voz e voto Assembleia Geral Ordinária (AGO) da empresa,ela denunciou a violações da empresa nos estudos socioambientais do Projeto Serra da Serpentina, nas regiões Norte e Nordeste de Minas Gerais; O megaprojeto prevê cavas, usina e um mineroduto de 115 km ligando Conceição do Mato Dentro a Nova Era, além de pilha de rejeitos para exploração de minério de ferro.
Mais de 40 comunidades tradicionais, entre quilombolas e indígenas, que devem ser afetadas diretamente pelas obras e operação. A implementação do projeto atingirá populações, modos de vida e o meio ambiente de 11 cidades mineiras – Antônio Dias, Carmésia, Conceição do Mato Dentro, Dom Joaquim, Itambé do Mato Dentro, Morro do Pilar, Nova Era, Passabém, Santa Maria de Itabira, Santo Antônio do Rio Abaixo e São Sebastião do Rio Preto.
O voto crítico é uma estratégia dos movimentos para alertar os investidores sobre os riscos financeiros que eles correm com as violações de direitos humanos e ambientais cometidos pela empresa. Na época, também foi apresentado voto contrário à aprovação do relatório administrativo de 2022, em função de outros quatro assuntos. Entre eles, a falta de transparência em relação à dívida líquida relacionada aos desastres de Brumadinho e Mariana e sobre projetos de expansão ferroviária e portuária no Maranhão.
Luta em defesa do território e do meio ambiente

Para comunidades tradicionais, a luta pelos direitos sociais, políticos e mesmo civis é indissociável da defesa da proteção do meio ambiente. Não é diferente no Córrego Frio. Marlene comenta, por exemplo, que a devastação das matas tem sido um dos maiores desafios enfrentados pela comunidade. Ela acrescenta que o problema tem gerado, por consequência, a escassez da água.
‘Nós temos dificuldade de acesso à água potável hoje em dia, desafios para fortalecer nossas hortas e quintais. Sabemos que tem pesquisa das mineradoras para a exploração na região – que tem muita comunidade quilombola e indígena.
Empresas tentam interferir nos processos de consulta

Antropóloga na assessoria técnica Núcleo de Assessoria aos Atingidos por Barragens-NACAB, Beatriz Ribeiro, que contribuiu na criação do Protocolo do Córrego Frio, denuncia que empresas terceirizadas ligadas às mineradoras têm tentado cooptar lideranças de comunidades tradicionais para construir um protocolo de consulta a toque de caixa, sem participação da comunidade e favorecendo os interesses das empresas.
“A gente tá vendo que as terceirizadas encontraram na construção do protocolo de consulta um bom negócio, porque elas incidem para que o documento atenda aos seus interesses. As comunidades devem ter cuidado para buscar assessorias e comunidades que já fizeram protocolos que podem ser assessores técnicos e apoiadores realmente comprometidos com o quilombismo no Brasil”, afirma.
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Consulta e consentimentos prévios são direitos da população quilombola
A consulta prévia, livre, informada e de boa-fé é um direito estabelecido na Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, de 1989, estando também amparada em diversos outros instrumentos internacionais. Ela foi ratificada no Brasil em 2002 e suas regras passaram a valer no território nacional em 2003.
O respeito à Convenção é uma obrigação do Estado sempre que um ato administrativo ou legislativo possa afetar ou causar impacto aos direitos dos povos indígenas e tradicionais. Apesar disso, esse direito tem sido sistematicamente violado, negando a consulta ou a fazendo sem legitimidade.
Assim, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais – que têm autonomia para decidir como devem ser consultados – têm elaborado instrumentos próprios autônomos, reiterando a expressão da diversidade de sistemas jurídicos e o exercício da autodeterminação. No Brasil, as primeiras experiências registradas do tipo foram em 2014, com o Protocolo do Povo Wajãpi e o Protocolo do Povo Munduruku.
A perspectiva desse direito em relação ao povo quilombola foi descrita no livro A Convenção nº 169 da OIT e a questão quilombola: elementos para o debate, escrito pelo jurista e quilombola Danilo Serejo, publicação da Justiça Global de 2023 e que conta sobre o processo de elaboração do protocolo de consulta das comunidades quilombolas de Alcântara-MA.
Pela primeira vez, em 2024, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) decidiu sobre um caso de comunidades tradicionais afrodescendentes no mundo e emitiu recomendações ao Brasil para titular o território das comunidades quilombolas de Alcântara e respeitar o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada.
Em decisão histórica, OIT recomenda que Brasil titule o território quilombola de Alcântara