
Decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos ocorre 40 anos após as primeiras remoções de quilombolas de Alcântara, no Maranhão, para a construção de uma base militar de lançamento de foguetes. O território tradicional ainda não foi titulado.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) vai anunciar nesta quinta-feira (13/03), às 15h, sentença da denúncia contra o Brasil pelas violações contra as comunidades quilombolas de Alcântara–MA, praticadas em torno da construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA).
Será a primeira vez que o Estado brasileiro será julgado por um caso envolvendo comunidades quilombolas. Também é o primeiro caso em que os interesses das Forças Armadas Brasileiras são confrontados num tribunal internacional.
A denúncia foi apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2001 por representantes de comunidades quilombolas do Maranhão, o Movimento dos Atingidos para Base de Alcântara (MABE), a Justiça Global, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão (FETAEMA), Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e a Defensoria Pública da União (DPU) – que entrou no caso em 2017. A Associação do Território Quilombola de Alcântara (Atequila) e o Movimento das Mulheres de Alcântara (Momtra) também entraram no processo na Corte Interamericana.
“O caso Comunidades Quilombolas de Alcântara–MA vs. Brasil é um dos mais importantes a receber sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao tratar de uma questão central para a garantia de direitos quilombolas: a titulação do território. Além disso, trata de um conflito histórico – que é elaborado ainda no regime empresarial-militar e continuado na democracia, dando seguimento à lógica militarizada e racista, com a remoção de mais de 300 famílias e uma cascata de impactos que reverberam até hoje”, analisa Melisanda Trentin, coordenadora do programa de Justiça Socioambiental da Justiça Global.
A audiência foi realizada em Santiago do Chile, entre 26 e 27 de abril de 2023 (recupere aqui: parte 1; parte 2 e parte 3).
Na ocasião, o governo brasileiro reconheceu parcialmente as violações e manifestou um pedido de desculpas. As organizações peticionárias se manifestaram logo após a audiência, alegando que o reconhecimento, além de incompleto, não apresentava medidas efetivas para imediata titulação e reparação dos quilombolas.
Na véspera da audiência perante a Corte IDH, o governo também anunciou a criação de um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para a titulação do território, que culminou num acordo publicado em outubro do ano passado. A Justiça Global se manifestou sobre o documento, ponderando a falta de efetividade e a possível fragilização do processo em curso de deliberação da Corte Interamericana após mais de 20 anos de tramitação no sistema interamericano.
Leia nota na íntegra: Justiça Global se manifesta sobre acordo firmado entre comunidades quilombolas de Alcântara e Governo Federal
Em julho de 2024, em decisão histórica, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) recomendou que o Brasil titule o território das comunidades quilombolas de Alcântara e respeite o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada, previsto na Convenção n.169. Foi a primeira vez na história que a OIT decidiu sobre um caso de comunidades tradicionais afrodescendentes no mundo.
Sentença marca momento histórico para a luta quilombola
Ao longo de mais duas décadas de tramitação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o governo brasileiro teve diversas oportunidades de reparar as violações, mas não o fez. Os quilombos de Alcântara ainda não contam com o título de propriedade coletiva de seu território tradicional.
As violações denunciadas são decorrentes da instalação de uma base de lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira, com a remoção de centenas de famílias, bem como pela omissão do Estado brasileiro em conferir os títulos de propriedade definitiva para os quilombolas. Além das desapropriações e remoções compulsórias, a perda do território impactou o direito à cultura, alimentação adequada, livre circulação, educação, saúde, moradia, saneamento básico e transporte de uma centena de comunidades quilombolas.
Com mais de 18 mil pessoas, o município de Alcântara, na região metropolitana de São Luís, concentra a maior população quilombola do país: quase 85% das mais de 18 mil pessoas, segundo o Censo do IBGE de 2002, distribuídas em mais de 200 comunidades.
Uma das primeiras regiões do Brasil a receber negros escravizados da África, às vésperas da independência em 1822, o Maranhão tinha o maior percentual de pessoas escravizadas do Império, em torno de 55%. É a partir do início do século XIX que o registro dos quilombos na região de Alcântara, cujas primeiras ocorrências datam do início do século XVIII, aumentou significativamente.
Pedidos das peticionárias
As representantes pedem à Corte a implementação as seguintes medidas de reparação:
- A titulação do território quilombola e a realização de um procedimento culturalmente adequado de consulta e consentimento prévio, livre e informado, bem como estudo de impacto ambiental, com base no Protocolo de Consulta Comunitário das Comunidades Quilombolas de Alcântara, desenvolvido em 2019, visando a realização de consulta retroativa sobre a decisão administrativa que determinou a redução, em 12.645 hectares, do território tradicional a ser titulado como propriedade coletiva, além da área de 8.713 hectares utilizada pelo Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) e da área de 543 hectares utilizada pela Agência Espacial Brasileira (AEB);
- Além da publicização de eventual decisão condenatória do Estado brasileiro em jornais de grande circulação, através da publicação do seu resumo, e em páginas oficiais do governo, as Representantes entendem pertinente a realização de um pedido formal de desculpas em cerimônia a ser celebrada em Alcântara;
- Reparações pecuniárias de Danos Materiais e Imaterais às Comunidades Não Reassentadas, diante das evidências sobre as ameaças de novas apropriações de parte do território pelo Estado brasileiro, impactando ao menos 800 famílias, e considerando os efeitos negativos da ausência de proteção das terras e territórios, advinda da titulação, como o contexto abandono histórico, discriminação sistemática, indiferença e falta de presença do Estado. Como efeito, essas comunidades têm violados os seus direitos ao meio ambiente sadio, alimentação adequada, acesso à água, terra, moradia, direitos culturais.
- Reparações pecuniárias de Danos Materiais e Imateriais às Comunidades Reassentadas, perante o deslocamento abrupto imposto aos membros de 32 comunidades quilombolas, e que passaram e se encontram em situação de deslocamento contínuo, nas agrovilas, além de situação de pobreza e privações causados pelas limitações drásticas de uso de seus meios tradicionais de subsistência;
- A determinação ao Estado Brasileiro de abster-se de praticar atos que possam levar a que agentes do próprio Estado ou de terceiros, agindo com o consentimento ou tolerância do Estado, possam efetuar deslocamentos de comunidades Quilombolas, a menos que o Estado obtenha consentimento prévio, livre e informado das referidas pessoas e até que a concessão do título de propriedade coletivo do território quilombola de Alcântara seja efetivada;
- A criação de um fundo de desenvolvimento comunitário que inclua um plano para o exercício dos direitos à alimentação, à água, ao meio ambiente sadio e à moradia em consulta e coordenação com as comunidades Quilombolas identificadas;
Capa: Mulher com rede de pesca na comunidade Vista Alegre que situa-se a cerca de 60 quilômetros da cidade de Alcântara, no Maranhão e possui aproximadamente 130 pessoas. A maioria delas é evangélica. A comunidade é caracterizada como ‘Terra de Caboclo’, pois não é formada por negros descendentes de africanos. Mas o grupo soma força em busca da titulação e quando houver a homologação do território eles terão mesmos direitos que outras comunidades, sendo juridicamente caracterizados como quilombo. A comunidade está na região que foi tomada pela Base Espacial de Lançamento, a Central de Lançamento de Alcântara (CLA) e vive atualmente a incerteza de permanecer no local (março, 2015). Pois é intenção da Base a remoção de diversas comunidades, incluindo esta. Crédito: Ana Mendes/Imagens Humanas.