

Levantamento do Conselho Nacional de Justiça analisou dados da primeira década de implementação da medida, reivindicada por organizações de direitos humanos. Mais de 153 mil casos de tortura foram documentados.
Os dados do Banco Nacional de Medidas Penais e Prisões (BNMP 3.0), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que a implementação das audiências de custódia – que completou 10 anos neste ano – evitou a prisão indevida em 41% dos casos. Ao todo foram realizadas 2 milhões de audiências desde fevereiro de 2015.
Segundo a pesquisa, em 59% dos casos, foi mantida a prisão preventiva e a prisão domiciliar em 0,3% dos casos. Relatos de tortura e maus-tratos foram registrados em 7% das audiências, com quase 153 mil casos.
Prevista no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana de Direitos Humanos, a audiência de custódia consiste na garantia do direito de cada pessoa presa em flagrante de ser apresentada a um juiz ou uma juíza em até 24 horas da sua prisão. O instrumento está no Código de Processo Penal desde 2019.
O judiciário, então, deve avaliar se a prisão foi legal e adequada, se a pessoa deve ser mantida presa, se deve ir para prisão domiciliar, ou se deve responder em liberdade – com condicionantes ou não (como uso da tornozeleira eletrônica) – e se deve ser aplicada alguma medida cautelar cabível.
Nesta audiência, aspectos relacionados à tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades, são avaliados. Além disso, o Ministério Público, a Defensoria Pública ou o/a advogado/a da pessoa privada de liberdade também são ouvidos.
“Em nossos relatórios sobre prisão provisória, inclusive nas experiências que tivemos acompanhando audiências de custódia, ficou explicitada a importância desse tipo de instrumento para enfrentar o encarceramento massivo de pessoas negras, pobres e por crimes de bagatela. Ao mesmo tempo, o desafio antirracista de enfrentar a privação de liberdade como primeira opção do judiciário persiste.”, avalia a assistente social e coordenadora do programa de combate à Violência Institucional e Segurança pública da Justiça Global, Monique Cruz.
Em 2015, o Supremo Tribunal Federal também confirmou a importância da realização das audiências para o devido processo legal nos julgamentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5240 e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347. Na primeira ação, o STF determinou que é improcedente o questionamento da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) da realização do procedimento.
Já na ADPF 347, o Supremo reconheceu as violações sistemáticas de direitos humanos nas prisões do país. A ação desdobrou no Plano Pena Justa.
Perfil das pessoas que foram submetidas às audiências de custódia
O painel aponta que são 84% homens e 16% mulheres, sendo 398 gestantes. Apenas 836 pessoas que passaram pelas audiências de custódia declaram ter emprego formal; 3,4 mil emprego informal; e 1,7 mil informaram ser estudantes. Mais de 27 mil pessoas informaram ter dependentes, e 25,7 mil informaram ser dependentes químicos.
Nos campos sobre raça, estado civil e escolaridade, não há informação disponível para mais de 50% dos casos. Considerando apenas os dados disponíveis, a maioria é de pessoas pardas (72,2 mil), solteiras (98,6 mil) e com ensino fundamental incompleto (48,6 mil).
Organizações de direitos humanos têm pressionado pela devida implementação da medida
A audiência de custódia foi criada após anos de pressão de organizações e movimentos sociedade civil.
Em 2014, por exemplo, a Justiça Global conduziu a campanha “Prisão não! Liberdade para os presos provisórios”, na qual destacava o problema do uso ilegal e abusivo da prisão provisória, e pressionava pela alteração de políticas de segurança e criminal que favorecem o encarceramento em massa da população pobre e negra.
Ainda em 2015, um conjunto de organizações – como a Justiça Global, a Conectas Direitos Humanos, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e a Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard – solicitaram uma audiência à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), para apresentar preocupações sobre a implementação da medida, cuja regulamentação ao nível nacional estava sendo conduzida pelo CNJ.
As organizações apresentaram dados, por exemplo, mostrando a opção primordial dos órgãos do sistema de justiça pela manutenção da prisão em flagrante e destacaram que práticas de maus-tratos, tortura e violência policial são recorrentes no momento da prisão.
“O que se constata na prática é que tal investigação é colocada em segundo plano em relação à averiguação de necessidade de medida cautelar. Não se tem verificado qualquer procedimento de acompanhamento da vítima da tortura posterior à audiência, como a imposição de perícia corporal-psicológica, reconhecimento das autoridades envolvidas, política de reparação ou mesmo a sistematização das denúncias em banco de dados que possa facilitar a criação de novas políticas de combate e prevenção à tortura”, afirmaram no pedido.
A Justiça Global também lançou dois relatórios envolvendo o tema. Em 2016, com base na realização de 300 audiências de custódia e 20 visitas a presídios do estado do Rio de Janeiro em parceria com o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/RJ), o relatório “Quando a liberdade é exceção” mostrava que a prisão provisória, que deveria ser uma medida excepcional, se torna regra no sistema carcerário e explora as condições em que se encontram as pessoas presas sem condenação.
Já em 2020, o relatório “Prisão como regra” mostrou que, das pessoas que tiveram prisão provisória decretada durante audiências de custódia no Rio de Janeiro, quase 70% eram suspeitas de crimes sem violência ou grave ameaça, como furto, tráfico de entorpecentes e receptação.
A pesquisa foi elaborada pela Justiça Global, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e o Observatório das Audiências de Custódia da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ (OBSAC-UFRJ). Segundo o documento, somente em 33,5% dos casos o magistrado decidiu por medidas alternativas ao cárcere.
Durante a pandemia da Covid-19, a sociedade civil também se mobilizou contra medida do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que aprovou o uso da videoconferência nas audiências de custódia. Para as organizações, o uso do recurso tecnológico descaracteriza uma função vital das audiências de custódia, que é possibilitar que juízes identifiquem casos de tortura ou maus-tratos durante a prisão.
Plataforma faz monitoramento da sociedade civil
Em outubro de 2022, a Associação para a Prevenção da Tortura (APT) – em parceria com diversas organizações brasileiras, entre elas, a Justiça Global – lançou a Plataforma Observa Custódia, que reúne dados sobre a operacionalização das audiências de custódia nas capitais dos 26 estados e Distrito Federal.
Saiba mais: https://www.global.org.br/blog/plataforma-monitora-dados-de-audiencias-de-custodia-no-brasil/