Brasil é condenado internacionalmente pelo assassinato do sem-terra Manoel Luiz
19 de fevereiro de 2025
Em sentença anunciada nesta terça (18), a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou o Estado brasileiro responsável pela falta de diligência e violação do direito à verdade na investigação do crime, cometido em 1997.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos anunciou nesta terça-feira (18/02) a sentença considerando o Estado brasileiro internacionalmente responsável no Caso Da Silva e outros Vs. Brasil, que trata do homicídio do trabalhador rural sem-terra Manoel Luiz da Silva. O crime foi cometido por agentes de segurança privada de uma fazenda em 19 de maio de 1997, no município de São Miguel de Taipu, na Paraíba.
O órgão do Organização dos Estados Americanos (OEA) entendeu que o Estado brasileiro falhou em garantir justiça e proteção aos direitos dos familiares da vítima, permitindo a impunidade do crime. A decisão cita a falta de uma resposta efetiva do Estado na investigação, violando também a integridade e o direito à verdade dos familiares de Manoel Luiz.
Crédito: Arquivo/CPT-PB.
O Estado reconheceu parcialmente a responsabilidade pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, considerando que a demora no processo causou sofrimento aos familiares de Manoel Luiz.
Mas os juízes apontaram diversas outras falhas na investigação, como:
Relativa à participação de agentes estatais;
Ausência de diligências para identificação e busca dos possíveis autores material e intelectual do delito;
Ausência de diferentes diligências probatórios;
Diferentes erros manifestos na tramitação do caso que resultaram em nulidades processuais; e
Falta de consideração do contexto de violência contra trabalhadores rurais em que os eventos ocorreram.
O caso foi denunciado pela Justiça Global, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) da Paraíba e a Dignitatis em 2005 e apresentado ao tribunal em 2021. As organizações vão, a partir de agora, monitorar o cumprimento dos itens da sentença.
A advogada e diretora-adjunta da Justiça Global Daniela Fichino comenta que, apesar dos 30 anos decorridos da luta por justiça nesse caso, “pouco se avançou no país para efetivamente sanar a chaga da violência no campo, enfrentar os crimes cometidos pelo latifúndio e garantir justiça a todas as violações perpetradas. Em um país em que trabalhadores rurais sem terra e seus movimentos de luta seguem criminalizados, ameaçados e intimidados, esta condenação abre mais um precedente internacional para que mudanças estruturais sejam implementadas”, diz.
Paraíba deverá ter um sistema específico de dados sobre violência contra trabalhadores rurais
Em decorrência das violações cometidas, a Corte ordenou várias medidas de reparação, incluindo:
Indenização aos familiares de Manoel Luiz, incluindo a oferta de suporte médico e psicológico adequado;
Garantir a reparação do caso a partir de um ato público de reconhecimento da responsabilidade do Estado Brasileiro;
A implementação, no prazo de dois anos, de um sistema regional específico para o Estado da Paraíba para a coleta de dados e estatísticas relativas a casos de violência contra pessoas trabalhadoras rurais.
A representante da Comissão Pastoral da Terra Nordeste (CPT-Nordeste), Tânia Maria, destaca que a morte do pai teve consequências inestimáveis para seu filho, Manoel Adelino: “Ele perdeu o pai ainda muito criança e ficou desprotegido porque a mãe ficou doente. Depois ele teve que se virar na vida ainda menino e nós ficamos firmes aqui na luta para que essa justiça acontecesse. Hoje essa luta foi coroada”.
Tânia Maria, agente pastoral da CPT, recebe a medalha Margarida Maria Alves na Assembleia Legislativa da Paraíba. Crédito: Arquivo/CPT.
Segundo a sentença, o sistema de dados tem o objetivo de “avaliar de forma precisa e uniforme o tipo, a prevalência, as tendências e os padrões da referida violência, desagregando os dados por estado, origem étnica, militância, gênero e idade”, especificando a quantidade de casos “que foram efetivamente judicializados, identificando o número de acusações, condenações e absolvições”. Todas as informações deverão ser obrigatoriamente divulgadas pelo Estado da Paraíba, com amplo acesso à população em geral.
Cenário de violência no campo é crítico em todo o país
A condenação do Brasil pela Corte Interamericana insere-se em um contexto alarmante de violência no campo. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, conflitos por terra aumentaram 16,7% no Brasil em 2022, afetando mais de 180 mil famílias. Em 2023, registraram-se 973 ocorrências no primeiro semestre, evidenciando a crescente tensão fundiária e a falta de respostas efetivas do Estado para conter a violência.
Com esta decisão, espera-se que o governo brasileiro tome medidas concretas para evitar a repetição de casos semelhantes e promova a proteção dos direitos humanos dos trabalhadores rurais, garantindo acesso à terra e justiça para vítimas da violência no campo.
O advogado da Dignitatis e professor da Universidade Federal da Paraíba Hugo Belarmino comemora a decisão, que ocorreu poucos dias após a celebração do centenário de Elizabeth Teixeira, defensora dos direitos humanos – em especial da reforma agrária.
“A condenação do Estado brasileiro hoje retrata um momento histórico. Como continuamos com o contexto de tantas violências no campo, essa sentença é um documento importantíssimo, não só para reconhecer e colaborar no processo de reparação das vítimas e dos familiares de Manuel Luiz, mas também para que a gente possa ter um instrumento a mais de luta e de monitoramento de políticas públicas efetivas para combater a violência no campo na Paraíba, em outros estados do Nordeste e em todo o Brasil”, avaliou.
Integrante da Liga Camponesa da Paraíba, Elizabeth Teixeira passou quase 20 anos na clandestinidade até reencontrar os filhos por intermédio do cineasta Eduardo Coutinho, para o filme Cabra Marcado Para Morrer (1984).
Entenda o caso
Manoel Luiz da Silva, à época com 40 anos, foi assassinado por capangas quando voltava de uma mercearia junto a outros três trabalhadores sem-terra. Eles foram atacados ao passar por uma estrada dentro da Fazenda Engenho Itaipu, que estava em processo de expropriação para reforma agrária. Os agressores atiraram contra os outros dois trabalhadores, que conseguiram fugir, e Manoel, que morreu no local. O caso teve uma investigação falha e parcial, com demora na realização de perícia e desconsideração do contexto de violência contra trabalhadores rurais.
Em 2003, os dois acusados foram absolvidos pela Justiça brasileira, e o terceiro suspeito nunca foi localizado. Nenhuma investigação foi conduzida contra o proprietário da fazenda, apesar das ameaças contra trabalhadores rurais na região.