A Corte Interamericana de Direitos Humanos julga em oito (8) de fevereiro, em San José da Costa Rica, a denúncia contra o Estado brasileiro por omissão no caso do assassinato, há 27 anos, do trabalhador rural Manoel Luiz da Silva.
O crime aconteceu em 19 de maio de 1997, em São Miguel de Taipu, na Paraíba. Neste dia, Manoel e outros três trabalhadores sem-terra seguiam de uma mercearia local rumo a um acampamento da reforma agrária, quando foram atacados por seguranças particulares ao passarem por uma estrada na Fazenda Engenho Itaipu, de propriedade de Alcides Vieira de Azevedo. A vítima tinha 40 anos. Manoel deixou para trás a esposa, Edileuza Adelino de Lima, grávida de dois meses, e um filho de quatro anos, Manoel Adelino.
Diante da demora e a falta de resposta do Estado neste caso, a Justiça Global, a Comissão Pastoral da Terra e a Dignatis acusam o Estado brasileiro de omissão na investigação policial e na ação penal que apuraram o assassinato de Manoel, violando o direito à integridade psíquica e moral dos familiares da vítima, além dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, conforme determina a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
O caso foi enviado em 2003 e admitido em 2006 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (veja relatório). Em 2021, a CIDH enviou o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A audiência será transmitida ao vivo pelas mídias sociais da Justiça Global, assim como da Corte Interamericana. Também será realizada uma mobilização online, por meio de um tuitaço (sob as hashtags #JustiçaParaAlmirEManoel e #BastaDeViolênciaNoCampo, #PeloDireitoDeLutarPelaTerra), impulsionado pelas organizações peticionárias do caso.
Entenda o caso
À época do crime, a Fazenda Engenho Itaipu estava submetida a um processo de expropriação a título de utilidade pública com fins de reforma agrária. Ao passarem pela estrada dentro da propriedade, caminho usual dos moradores da região, os quatro trabalhadores foram ameaçados e ofendidos pelos capangas. Manoel Luiz foi alvejado e morreu na hora. Os demais conseguiram fugir.
A investigação teve diversas falhas, como a demora para a realização da perícia, falta da busca pela arma do crime e a desconsideração do contexto de violência contra os trabalhadores rurais na Paraíba no qual o caso se inseria. O terceiro capanga, que teria sido autor dos disparos, nunca foi encontrado e, após um processo de 16 anos, os outros dois foram absolvidos pela Justiça em 2003. Apesar do histórico de ameaças contra integrantes do movimento, o proprietário da terra não foi investigado.
“Durante todo esse período, as diligências investigativas se limitaram à oitiva de um número reduzido de pessoas, além de ter se perseguido, de forma diligente, linhas investigativas disponíveis desde o início, como a identificação do suposto autor dos disparos, a presença de armas na sede da fazenda onde se deram os fatos e a inserção dos fatos no contexto maior da perseguição contra trabalhadores rurais sem-terra, inclusive com outros fatos análogos envolvendo o proprietário da fazenda em questão”, escrevem as organizações peticionárias.
Impactados pelo assassinato e ausência de Manoel Luiz, sua família viveu uma situação dramática nos anos seguintes. A esposa, Edileuza, desenvolveu depressão e alcoolismo após a perda do marido, tendo perdido o filho caçula quando este tinha nove meses e falecido em 2005. Seu filho mais velho, Manoel Adelino de Lima, morou com diversos parentes e precisou trabalhar desde criança, não podendo terminar os estudos. A mãe de Manoel, Josefa, ainda sofre com a perda arbitrária do filho.
Assentamento Manoel Luiz
O assentamento em que Manoel Luiz residia atualmente leva seu nome. No entanto, muitos dos acampados que chegaram com ele ao local foram embora logo após o crime, por medo de represálias. Até abril de 2022, o Assentamento Manoel Luiz tinha 700 pessoas. Os assentados enfrentam sérios desafios, como dificuldade de acesso à água para a produção agrícola, baixo número de cisternas, precariedade das estradas de acesso, dificuldade de inscrição em programas de agricultura familiar e distância entre as habitações e as áreas designadas para as plantações.
Cenário sistemático de violência no campo e contra a luta pelo direito à terra
O caso de Manoel Luiz da Silva não está isolado. A falta de uma resposta estatal adequada frente do seu assassinato revela e reforça uma situação recorrente de violação de direitos humanos aos trabalhadores rurais na Paraíba, em particular, e no Brasil, de forma geral, “reproduzindo a lógica de impunidade, falta de políticas públicas, omissão e conivência das forças policiais, inefetividade das políticas de reforma agrária, enfim, do descumprimento dos deveres do Estado Brasileiro consignados na Convenção Americana”, descrevem as organizações peticionárias.
Segundo a última pesquisa da Comissão Pastoral da Terra, os conflitos por terra no Brasil aumentaram em 16,7% e atingiram 181.304 famílias em 2022. O levantamento aponta que 47 pessoas foram assassinadas naquele ano, números 30% maiores em relação a 2021. As tentativas de assassinato saltaram de 33 para 123 registros de um ano para o outro e as ameaças de morte chegaram a 206 casos. Apenas na Paraíba, em 2022, a pesquisa registrou 19 conflitos por terra no estado, afetando 3.893 famílias.
De acordo com dados parciais da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram registradas 973 ocorrências de conflitos no campo no primeiro semestre de 2023, o que representa um aumento de 8% em comparação com o mesmo período de 2022. O número também indica que o primeiro semestre de 2023 ocupa o 2º lugar nos últimos 10 anos, sendo superado apenas pelo ano de 2020, quando foram registrados 1.007 conflitos.
Em novembro do ano passado, também na Paraíba, dois trabalhadores rurais, Ana Paula Costa Silva e Aldecy Viturino Barros, foram assassinados a tiros no município de Princesa Isabel, no Sertão da Paraíba. No mesmo mês, o agricultor e acampado Josimar da Silva Pereira foi executado na cidade de Vitória de Santo Antão (PE). Os casos ainda são investigados.
É, ao menos, o oitavo caso no Sistema Interamericano de Direitos Humanos relacionado à violência contra trabalhadores rurais (Antônio Tavares Pereira; Sebastião Camargo; Sétimo Garibaldi; Escher; Francisco Assis; José Dutra e Almir Muniz; e Margarida Alves).