A Artigo 19, o Instituto de Defensores de Direitos Humanos – DDH, a Justiça Global e a Conectas vêm a público manifestar o seu apoio a manutenção dos vetos presidenciais a lei 13.260/16, que instituiu o crime de “terrorismo” e delitos colaterais.
Conforme já foi exaustivamente explicitado em manifestações anteriores, a aprovação da lei antiterrorismo, por si só, já representou um enorme retrocesso político-criminal e uma severa ameaça às liberdades de reunião e de manifestação do pensamento. Contudo, a possibilidade de trazer ao ordenamento jurídico os dispositivos vetados agrega um incalculável risco de criminalização dos movimentos sociais e de cerceamento aos direitos e garantias individuais.
Os vetos atingiram os seguintes dispositivos: a) parte dos pontos que caracterizam “terrorismo contra coisa” (Art. 2º, II e III); b) o trecho na íntegra que criava o crime de apologia ao terrorismo (Art 4º); c) parte dos pontos que caracterizavam a conduta de “auxílio” a organizações terroristas (art 3º, §1º e 2º); d) o ponto que determinava o aumento de pena em razão de dano ambiental (Art 8º); e) o ponto que determinava o regime fechado para cumprimento de pena (Art. 9º); e f) o ponto que atribuía ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) a coordenação dos trabalhos de combate aos crimes previstos na lei (artº 11, parágrafo único).
Cumpre, então, destacar as graves incongruências dos dois dispositivos vetados que apresentam maior ofensa aos valores democrático-constitucionais a merecer a máxima atenção do parlamento brasileiro.
DA NECESSIDADE DE MANUTENÇÃO DO VETO AO “TERRORISMO CONTRA A COISA”
Os incisos II a III do artigo 2º, §1º trazem ao rol de atos terroristas condutas que não exigem perigo ou dano à vida e incidem em a) indeterminação, b) desproporcionalidade e c) desnecessidade, razão por que seu veto deve ser mantido.
Pretende-se tipificar atos terroristas por meio de tipos mistos alternativos, ou seja, núcleos alternativos da conduta criminosa, que preveem variadas formas de realização da figura típica. São, ao todo, 8 verbos ou locuções verbais, que, conjugados aos predicados, resultam num enorme rol de condutas – aliás, já criminalizadas na legislação penal brasileira (c).
Embora estas condutas variem quanto à gravidade e ao bem jurídico em tese lesado, é indistintamente cominada a pena de 12 a 30 anos de reclusão. Ou seja, caso o veto não seja mantido, é possível que um indivíduo, acusado da depredação de um bem privado, uma vez supostamente identificado o especial fim de agir, seja condenado pelo crime de terrorismo à pena de 30 anos de reclusão.
A lei antiterrorismo já trouxe um aumento desproporcional de penas cominadas a condutas mal definidas nos incisos I, IV e V do art. 2º, §1º. Criou-se, desse modo, uma via aberta à criminalização arbitrária de agentes não identificados pelos aplicadores da lei com a defesa de direitos constitucionais. Nesse sentido, é absolutamente descabido que o Congresso Nacional amplie a possibilidade de aplicação de penas draconianas a condutas com baixíssima lesividade social.
DA IMPERIOSA NECESSIDADE DE MANUTENÇÃO DO VETO AO CRIME DE “APOLOGIA AO TERRORISMO”
“Art. 4º Fazer, publicamente, apologia de fato tipificado como crime nesta Lei ou de seu autor: Pena – reclusão, de quatro a oito anos, e multa. § 1º Nas mesmas penas incorre quem incitar a prática de fato tipificado como crime nesta Lei. § 2º Aumenta-se a pena de um sexto a dois terços se o crime é praticado pela rede mundial de computadores ou por qualquer meio de comunicação social. ”
O veto ao artigo 4º, que pretende dar punição especial à apologia ao terrorismo deve ser integralmente mantido a bem da segurança jurídica e do inafastável valor da liberdade de expressão. O dispositivo em comento padece dos seguintes vícios: a) desnecessidade, b) desproporcionalidade e c) imenso potencial para aplicação arbitrária. A conduta que se pretende criminalizar já encontra tipificação no ordenamento jurídico brasileiro.
Os artigos 286 e 287 do Código Penal punem, respectivamente, a incitação da prática de crime e a apologia de fato criminoso ou de autor de crime. Ambos os tipos penais cominam a pena de detenção de três a seis meses, ou multa. De tal sorte, a competência para processo e julgamento é dos Juizados Especiais Criminais sendo aplicáveis os institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, quais sejam, transação penal e suspensão condicional do processo. Eventual condenação resulta numa sanção muito inferior a quatro anos de reclusão, o que permite a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (art. 44 do Código Penal) e, ainda, a suspensão condicional da pena (artigo 77 do Código Penal).
Mesmo a Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83), aprovada na vigência da ditadura militar, em seus artigos 22 e 23, comina aos delitos de “propaganda” (que corresponde à apologia) e incitação a pena de detenção de 1 a 4 anos. Permite-se, desse modo a suspensão condicional do processo, a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos e está vedada, como regra, a imposição de prisão preventiva (art. 312 do Código de Processo Penal). Na mesma linha, seguiu o Código Penal Militar impondo ao delito de incitação a pena de 2 a 4 anos de reclusão.
O tratamento penal reservado, em todos os casos supracitados, às condutas em análise é compatível com sua questionável lesividade e capacidade de reclamar a intervenção extrema do direito penal. Isto pois, se a manifestação do agente tem aptidão para concretamente incentivar o cometimento de delito por outrem, sua responsabilização se dará, na qualidade de partícipe (instigador), pelo crime efetivamente praticado, conforme a regra geral contida no artigo 29 do Código Penal. Pune-se, portanto, nos delitos de apologia e incitação a mera manifestação da opinião e não a consumação dos atos elogiados ou incentivados.
A pena cominada pelo dispositivo em análise é absolutamente desproporcional à reprovabilidade da conduta proibida. Na hipótese de uma suposta apologia ao terrorismo por meio de redes sociais a pena máxima prevista em abstrato chega a inacreditáveis 13 anos e 4 meses de reclusão, sendo, portanto, mais do que 3 (três) vezes superior à pena máxima que o legislador, durante a ditadura militar, cominou à conduta idêntica. A comparação é ainda mais dramática quando se analisa a punição de crimes contra à vida e integridade física. Trata-se, nessa linha, de uma pena mais do que 4 (quatro) vezes maior à imposta ao homicídio culposo (art. 121, 3º), superior à pena da lesão corporal gravíssima e a da lesão corporal seguida de morte.
O artigo 4º viola, portanto, o postulado da proporcionalidade, na medida em que uma conduta, sem violência ou grave ameaça, que não gera qualquer alteração material na realidade fática seja punida de forma muito mais severa do que atos que atentam gravemente contra a vida e a incolumidade física das pessoas. Mais do que isso, permite-se a imposição de prisão preventiva e a condenação a regime fechado de cumprimento de pena, algo incabível, por exemplo e como regra, no homicídio culposo.