Violações de direitos marcam o massacre ocorrido em 2000. A decisão determina que Justiça Militar brasileira não deve julgar delitos cometidos contra civis.
Em transmissão virtual da sentença nesta quinta-feira (14 de março), a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou que o Estado brasileiro é responsável internacionalmente pelo uso desproporcional da força empregada pela Polícia Militar, durante uma marcha pela reforma agrária do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Campo Largo, no Pananá, em 2 de maio de 2000, contra o trabalhador rural e integrante Antonio Tavares Pereira, assassinado na ocasião, e outros trabalhadores rurais feridos que buscavam manifestar-se publicamente.
O caso da morte de Antonio Tavares foi arquivado pela justiça militar e as lesões corporais causadas aos demais militantes jamais foram investigadas. A Corte considerou que eles tiveram violados seus direitos à vida, à integridade pessoal, à liberdade de pensamento e de expressão, de reunião, da criança e de circulação.
Uma das vítimas do massacre da BR-277, Loreci Lisboa sofreu diversos ferimentos e viu de perto o assassinato de Antonio Tavares. “A gente sofreu muito naquele dia. Espero que com isso, não só esse governo, mas outros que vierem, saibam o que fazer com o pessoal que vem reivindicar. Nem bicho foi tratado como nós. Foi desumano o que fizeram”. Ela acompanhou o anúncio da sentença também em Curitiba e se emocionou ao comentar o que sentiu.
“O coração ainda continua a mil. É uma vitória grande que a gente conseguiu depois de todos esses anos. Foram mais de 20 anos de batalha. A gente se sente ser humano diante dessa decisão. Essa decisão, pra nós que somos da classe baixa, da família Sem Terra, é uma vitória imensa. Outra vitória é o monumento poder ficar ali, e a gente poder visitar”, afirmou Loreci Lisboa, uma das vítimas.
Para Roberto Baggio, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pelo Paraná, a sentença significa uma vitória, diante de tantos anos de impunidade: “A Corte, em sua decisão, reconhece que lutar pela terra, se organizar, não é crime. É um direito das pessoas para democratizar a terra. (…). O assunto dos direitos humanos não é mais assunto dos aparatos de segurança pública, mas trata-se de uma questão a ser tratada por meio de políticas públicas. A decisão da Corte é uma decisão contundente, que alimenta a luta pela reforma agrária, que alimenta a luta por direitos e para que se avance no país a democratização da propriedade da terra”.
O Tribunal também responsabilizou o Brasil por violações em relação à investigação e aos processos judiciais decorrentes dos fatos, tanto em relação a Antonio Tavares, quanto a 69 dos 185 trabalhadores que participavam da manifestação.
Brasil deve impedir que Justiça Militar julgue delitos contra civis
Na sentença, a Corte determinou que o Estado adeque o ordenamento jurídico brasileiro para impedir que a Justiça Militar brasileira julgue delitos cometidos por militares contra civis. Na sentença, a Corte relembrou a sentença do caso relacionado à Favela Nova Brasília de que tais situações sejam investigadas e julgadas por órgão independente da força policial envolvida no incidente.
“A condenação do Brasil no caso Antônio Tavares é um importante passo para a efetivação da justiça, reparação e mitigação das violações contra os defensores de direitos humanos, especialmente os que atuam na defesa da terra e território. Ao determinar que o Estado brasileiro altere a competência da Justiça Militar e ela perca a atribuição para julgar crimes contra civis, a Corte empurra o Brasil para dar um passo decisivo no enfrentamento à impunidade e a violência policial no país”, comenta a diretora-executiva da Justiça Global, Glaucia Marinho.
Para o advogado e coordenador do programa de Justiça Internacional da organização, Eduardo Baker, a sentença notificada nesta quinta-feira (14) pela Corte Interamericana de Direitos Humanos é um momento histórico na luta por direitos humanos no Brasil e pode se tornar um marco na adequação da legislação brasileira aos parâmetros internacionais de direitos humanos.
Baker avalia que a determinação que o Estado brasileiro reforme sua legislação sobre a Justiça Militar é uma das maiores contribuições que o sistema internacional de direitos humanos já deu ao tema no Brasil, ao tratar da atuação da Justiça Militar já no período após a ditadura. “Na sua decisão, a Corte Interamericana determina que o Estado mude sua legislação para garantir que nenhum crime cometido contra civil seja conhecido ou julgado pela Justiça Militar. Além disso, deve afastar a possibilidade da Polícia Militar investigar crimes supostamente cometidos contra civis”.
Medidas de reparação aos familiares e vítimas e proteção ao monumento
A sentença da Corte Interamericana estabelece que o Estado deve fornecer tratamento para a saúde física e mental gratuitamente e indenização para os familiares de Antonio Tavares e às 69 vítimas, das quais houve provas concretas das lesões corporais sofridas. O Brasil também deverá realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional e ainda proteger efetivamente o Monumento em homenagem ao trabalhador, que é objeto de medidas provisórias do Tribunal. “A Corte reconhece que o monumento Antonio Tavares é a memória da luta coletiva da história da luta dos camponeses e de todos que lutam pelos direitos humanos”, comentou Baggio, do MST.
Corte Interamericana determina que Brasil proteja monumento em memória à luta pela reforma agrária.
Outra medida determinada pela Corte foi a inclusão de conteúdo específico na grade curricular permanente de formação das forças de segurança que atuam no contexto de manifestações públicas no estado do Paraná sobre o uso da força em contextos de protesto social e outros pontos na sua atuação ostensiva.
Apesar de tratar de fatos que aconteceram há 24 anos, esta decisão é muito atual para pessoas que se organizam para lutar por direitos, como reforça a coordenadora de incidência internacional da Terra de Direitos, Camila Gomes. “Essa condenação coloca na agenda política do país a seguinte questão, que precisa ser enfrentada pelas autoridades brasileiras: quantas vidas mais de trabalhadores rurais Sem Terra serão ceifadas e quantos casos mais de violência contra pessoas que defendem direitos terão que acontecer para que o Brasil reconheça que lutar por direitos não é crime, para que a vida das pessoas defensoras seja efetivamente protegida?”, questiona a advogada.
A denúncia foi apresentada ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos em 2004 e a audiência na Corte IDH foi realizada em 2022, na Costa Rica. O episódio é considerado pelo MST “um dos momentos mais emblemáticos do processo de violência e de criminalização da luta pela terra”.
A sentença foi emitida no dia 16 de novembro, mas só ficou disponível para o público e pronunciado nesta quinta-feira (14). O comunicado da Corte foi transmitido e está também no YouTube da Justiça Global, copeticionária do caso ao lado da Terra de Direitos e do MST, e acompanhado pelos autores da ação, familiares, vítimas e representantes de Ministério de Relações Exteriores, entre outros órgãos.
Esse é o décimo terceiro julgado pela Corte Interamericana contra o Brasil e, desse total, é o terceiro envolvendo violações contra trabalhadores rurais sem-terra. A Justiça Global é peticionária de seis casos que já resultaram em condenação do Estado brasileiro por violações de direitos humanos.