Na segunda reportagem da série provocada pelo debate da PEC das Praias, a Justiça Global discute a regularização fundiária nas cidades e a questão das favelas.
No início deste ano, o IBGE decidiu substituir a denominação dos “aglomerados subnormais”, adotada desde 1991, para “favelas e comunidades urbanas”. A mudança é reivindicada há anos pelos movimentos sociais, como uma forma de dar fim à conotação negativa da nomenclatura de algo que está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e na Constituição Federal Brasileira de 1988: o direito à moradia adequada.
“Consequentemente, está a previsão de que pessoas podem mobilizar os meios disponíveis para viabilizá-lo, inclusive a autoconstrução e a ocupação dos espaços da cidade a fim de concretizar sua função social”, explica a nota da instituição sobre a mudança, lembrando que o direito também é descrito no Comentário n.º 4 do relatório do Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, publicado em 1991.
A ONU-Habitat estimou cerca de um bilhão de pessoas vivendo em favelas e assentamentos informais no mundo em 2022. No Brasil, segundo o IBGE, são 11.403 mil favelas e comunidades urbanas, em que vivem 16,6 milhões de pessoas (8% da população brasileira) em um total de 6,6 milhões de domicílios (Censo 2022).
Quase 125 mil dessas pessoas moram somente na Maré. O bairro carioca, formado por 16 favelas, seria supostamente beneficiado com regularização fundiária pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º3 de 2022, a PEC das Praias, que tramita no Senado, argumentam seus defensores.
A medida beneficiaria 8,3 mil moradores, menos de 6% do total. Essa densidade populacional, porém, parece ser ignorada pelas autoridades na garantia de serviços e direitos no bairro, aponta o morador Maurício Dutra, coordenador do eixo de direitos urbanos e socioambientais da Redes da Maré, organização não governamental que atua no bairro e que está à frente de uma série de iniciativas e pesquisas de base comunitária.
“A gente tem uma área que supera a de muitos municípios do país e não chega a ter operacionalizando de maneira plena nem 40 funcionários da Comlurb [Companhia Municipal de Limpeza Urbana]. E a justificativa da empresa vai ser que os moradores jogam lixo no chão. (…) Quando a gente vai lá e pesquisa, observa que é desproporcional, por exemplo, o número de moradores por praça. Isso faz com que esses equipamentos sejam usados em excesso e, com a falta de manutenção por parte do poder público, se desgastem mais rápido. Mas mesmo o morador parte da percepção de que as coisas estão quebradas pelo mau uso”, observa.
A Maré está à margem da Baía de Guanabara e entre três importantes vias expressas da cidade: a Avenida Brasil, a Linha Vermelha e a Linha Amarela. O bairro surgiu a partir de 1920 como uma vila de pescadores, em casas construídas majoritariamente à base de palafitas sobre manguezais, no entorno da antiga Praia de Inhaúma, também do Porto e, mais tarde, no aterro da Ilha do Fundão.
Tempos depois, foi ainda destino de diversos migrantes que fugiam da seca de estados da região Nordeste do país. E, a partir da década de 1960, muitas famílias foram realocadas para conjuntos habitacionais contruídos pelo próprio governo após as grandes remoções de favelas da Zona Sul. Assim, 9 das 16 favelas da Maré foram pensadas pelo próprio poder público, e as demais tiveram ocupações espontâneas.
Maurício Dutra observa que, mesmo nesses casos, uma minoria dos moradores teve a moradia regularizada e o Estado foi, ele mesmo, autor de diversas irregularidades.
“São pensados modelos de conjuntos habitacionais que não consideram prestação de serviços e infraestrutura adequada para viver. Isso só mostra que, quando esses espaços são pensados para comunidades periféricas, frequentemente não é planejado para a garantia plena no direito à moradia”, conta Maurício Dutra.
Levantamentos próprios da Redes da Maré apontam que o acesso à moradia no bairro é de 79,19%, enquanto na Gávea, um bairro de classe alta da cidade, é de 95,84%. O Censo Maré, projeto realizado pela Redes da Maré em parceria com o Observatório de Favelas, mapeou 64,3% dos domicílios próprios de seus moradores. Dos 26.984 que têm documentos, apenas 8% têm títulos de posse concedidos pela prefeitura ou pelo governo estadual; 38,7% têm escritura definitiva; 2,5% têm promessa de compra e venda (em cartório); e 49,2% têm declaração cedida pela associação de moradores.
Diante dos desafios impostos pela ausência de respostas, frequentemente, são os próprios cidadãos que precisam criar soluções. O projeto Se essa rua fosse nossa, também da Redes da Maré, por exemplo, mapeou 815 logradouros no bairro em 2012 e constatou que metade não constava nos dados oficiais. O guia pode ser usado por carteiros, agentes de saúde, conselho tutelar, assistentes sociais e até por oficiais de Justiça e, principalmente, pelos próprios moradores.
E a PEC das Praias? Vai resolver o quê?
Como trouxemos na primeira reportagem da série, a PEC 03/2022, permite o repasse da União a estados, municípios e até particulares mediante o pagamento de terrenos de Marinha (territórios que estavam a 33 metros do ponto mais alto da maré tendo o ano de 1831).
Em audiência pública sobre o projeto, o relator no Senado, o parlamentar de direita Flávio Bolsonaro (PL/RJ) chegou a argumentar que o projeto contribuiria para a regularização fundiária, permitindo, por exemplo, a transferência de 8,3 mil casas para moradores do Conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro (RJ).
O autor do livro O Direito das Favelas (Letra Capital, 2013), o pesquisador e professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Alex Ferreira Magalhães se contrapõe à justificativa: “Essa afirmação é contrafactual. Se você puxar o histórico de regularização fundiária, você observa que as terras públicas foram as que mais tiveram regularização, se comparado às privadas. O fato de estar em terra pública é um facilitador, principalmente porque é do próprio Estado a incumbência de regularização”.
Para Maurício Dutra, do Redes da Maré, a maneira como o assunto é tratado demonstra que não há interesse efetivo em garantir direitos. “O Estado produz uma demanda habitacional, mas não garante a segurança da posse. Se isso não foi feito décadas atrás, por que vai fazer agora, usando uma oportunidade política e para apenas 8,3 mil pessoas – o que não atende nem uma das 16 favelas?”.
Segundo levantamento do G1, a cidade do Rio de Janeiro tem 62.284 terrenos de marinha cedidos a terceiros, mais 536 ocupados pela administração pública. O estado tem a quarta maior área. 2.294.002m2, atrás do Amazonas, do Pará e da Bahia.
O mar tem uma importância especial na urbanização da cidade do Rio de Janeiro, lembra Alex Magalhães, e diante da enorme área de aterros desde o ano marco da regra atual, 1831, uma parte importante hoje está sob terrenos de marinha. “A cidade se expandiu sobre as águas”, diz. Ele explica que a propriedade da União sobre tais territórios não impossibilita seus usos – como parece resolver a PEC, mas garante a administração.
“Isso só é uma solução para quem acha que a propriedade privada resolve todos os problemas. A PEC demonstra uma desconfiança na gestão pública e tem uma aposta arriscada no poder do mercado”, afirma Alexa Magalhães. Ele completa que é necessário melhorar a gestão – mas fortalecendo-a, e não enfraquecendo-a.
O professor complementa que, ao longo da história brasileira, muitos terrenos de marinha foram indevidamente apropriados por particulares inclusive, mediante títulos falsos (por grilagem). Em sua avaliação, a proposta de emenda atende aos interesses de facilitar a regularização desses imóveis.
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Política urbana marcada por despejos
A denominação “favela” surgiu oficialmente em pesquisas censitárias nos anos 1950 na então capital federal, Rio de Janeiro, que já mapeavam 7,2% da população da cidade neste tipo de habitação. Mas sua origem desse modo de habitação remonta a meados do século XIX, diante do desalojamento de milhares de pessoas de cortiços, principalmente africanos e descendentes de ex-escravizados, para supostamente promover saneamento básico e reurbanização (para quem, não é?).
O especialista em planejamento urbano Alex Magalhães afirma que o principal efeito da regularização desses espaços é a segurança da moradia, apenas um dos passos para a garantia de outros direitos aos/às moradores/as:
“Segurança contra despejos, contra a remoção, contra a expulsão pela força do mercado, dando ao morador de áreas pobres um instrumento a mais para se defender”, diz. E completa: “Ao lado disso, a regularização tira do morador das áreas pobres o estigma da ilegalidade. E isso tem uma repercussão política”.
O pesquisador explica que, além das favelas – formato mais expressivo na cidade do Rio de Janeiro – , são tipos de moradias que precisam de regularização: os loteamentos irregulares e/ou clandestinos (mais presentes na Zona Oeste e nas periferias da cidade); os conjuntos habitacionais (produzidos pelo poder público, principalmente, a partir de 1960); os cortiços (que ainda são encontrados na região Central da cidade). Há ainda outros tipos, ele diz, como condomínios populares (ocupações em galpões, comuns na Avenida Brasil), os edifícios comerciais ocupados pelos movimentos de trabalhadores sem teto, da população em situação de rua, as moradias improvisadas, etc.
Segundo a Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional do Brasil totalizou 6 milhões de domicílios em 2022, o que representa 8,3% do total de habitações ocupadas no país. O termo designa habitações com condições inadequadas ou precárias para moradia, ou mesmo a ausência de moradia. O Rio de Janeiro é o terceiro estado com maior número absoluto (544.275). Para o professor, a questão do déficit habitacional já poderia ser enfrentada na cidade do Rio: “Temos enormes vazios urbanos que poderiam ser usados para moradias populares”.
Produzida pelo LABÁ – Direito, Espaço & Política (FND-UFRJ), em parceria com o Observatório das Metrópoles (IPPUR-UFRJ) e o Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (NUTH), a pesquisa Cartografias Jurídicas: mapeando conflitos fundiários urbanos na cidade do Rio de Janeiro identificou 121 conflitos fundiários urbanos e 17.503 famílias afetadas entre 2019 e 2020 no estado. As ameaças de remoções eram motivadas por questões como obras viárias, rompimento de contratos ou pagamento de taxas, irregularidades urbanísticas, ocupação e vulnerabilidade ou risco ambiental.
“A moradia é o espaço concreto onde se desenvolve e se afirma a vida individual e familiar. É abrigo de existências e base material de vínculo com os lugares de realização de sociabilidades. […] A favela é o lugar, portanto, que tornou possível a muitos homens e mulheres afirmarem seu direito de habitar a cidade diante de processos de urbanização excludentes”, escrevem os pesquisadores da Redes da Maré no Censo Maré.
Para além do CEP: regularização como passo para garantir direitos
Já falamos aqui que a ausência de regularização de propriedade no meio urbano atinge especialmente as populações empobrecidas que vivem em assentamentos precarizados e informais. Isso se expressa em falta de acesso à infraestrutura e a serviços públicos, também na insegurança da posse – expondo moradores a despejos violentos e remoções forçadas, ações de grupos ilegais, além de processos de gentrificação.
O Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (Iterj), que executa a política fundiária estadual, explica que a ação garante, entre outros direitos, rua com endereço oficial, imóvel para referências bancárias e comerciais, cadastro no IPTU e imóvel reconhecido administrativamente e atendido pelos serviços prefeitura.
As medidas do órgão abrangem as regiões de baixa renda declaradas Áreas de Especial Interesse Social (AEIS) – como favelas, loteamentos inscritos no Núcleo de Regularização da Prefeitura, reassentamentos e conjuntos habitacionais.
O caso da Maré mostra que, mesmo quando é o próprio Estado que abriga populações – frequentemente, após removê-las -, os problemas relacionados à falta de regularização fundiária e urbanística persistem, como a segurança da posse, a falta de acesso a serviços públicos, a infraestrutura urbana, a possibilidade de despejo e a impossibilidade de financiamentos para melhorias na moradia.
“Quando você pensa em regularização fundiária, na verdade, a gente tem que se perguntar com o que se quer dizer com regularização, porque envolve dimensões como urbana, fundiária, ambiental. O que adianta ter só um documento na mão? Consolidar um território formal envolve muito mais que um título. Envolve cultura, infraestrutura, geração de renda… um apanhado de serviços que possam dar dignidade para esses moradores, todo o exercício da cidadania”, afirma Maurício Dutra.
O coordenador da Redes da Maré relata certo episódio que o poder público, acionado pelo Ministério Público Estadual pela falta de saneamento básico na favela da Nova Holanda, argumentou que os moradores seriam “invasores” – ignorando que o local foi concebido como um Centro de Habitação Provisória por imposição do próprio Estado, à época da gestão do governador Carlos Lacerda (1960-1965), a partir das remoções das favelas Macedo Sobrinho, Praia do Pinto, Morro da Formiga, Morro do Querosene e Morro do Esqueleto (onde hoje está a Universidade do Estado do Rio de Janeiro). “Ainda alegaram que cometíamos crimes ambientais, códigos de obras e paisagísticos da cidade”, contou.
A regularização fundiária e o enfrentamento à crise climática
Refletindo sobre a crise climática, o professor Alex Magalhães complementa que desde a Eco-92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992, que ocorreu na cidade do Rio, a questão ambiental tem sido incorporada ao debate sobre planejamento urbano.
“Isso foi levando no Brasil um certo conceito de regularização fundiária sustentável, preocupada com as questões ambientais, com a questão de riscos de desastres. Com a segurança da moradia não somente do ponto de vista jurídico, mas também do ponto de vista físico, ambiental. Essa tragédia no Rio Grande do Sul certamente vai trazer isso ainda mais para a ordem do dia. Desastres que já ocorreram na cidade do Rio, na Região Serrana [do estado] e em Angra dos Reis já deveriam deixar essas questões muito mais marcadas na política pública”, analisa.
Questionado se o cenário ameaça mais remoções, Maurício Dutra destaca que muitos dos problemas foram criados pelo próprio Estado e que, desde já, são os próprios moradores que – mais uma vez – precisam usar a criatividade para desenvolver diagnósticos e soluções ambientais no território.
Lançado neste ano, o projeto Respira, Maré, por exemplo, identificou ilhas de calor no território, riscos relacionados a inundações fluviais e ao aumento do nível do mar, além de adoecimentos e mortes causados pela poluição do ar. A partir do projeto, têm sido desenvolvidas tecnologias verdes junto com os moradores, que envolvem compostagem, telhados verdes, replantios, recuperação de mangue e a criação de um biodigestor.
Do legado fez-se espólio
A questão da moradia foi um dos temas do dossiê Do Legado fez-se Espólio: megaeventos, violações de direitos humanos e luta social na cidade do Rio de Janeiro, publicação da Justiça Global, em 2020, sobre os dez anos que se sucederam após os Jogos Pan-Americanos, de 2007, e as Olimpíadas de 2016, ambas no Rio.
Leia aqui: Do legado fez-se espólio.