É a primeira vez na história que a OIT decide um caso de comunidades tradicionais afrodescendentes no mundo.
Em decisão histórica, a “Organização Internacional” do Trabalho (OIT) emite recomendações ao Brasil para titular o território das comunidades quilombolas de Alcântara e respeitar o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada, previsto na Convenção n.o 169. É a primeira vez na história que a OIT decide um caso de comunidades tradicionais afrodescendentes no mundo.
A decisão responde a uma representação apresentada pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alcântara e pelo Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar de Alcântara em 2019 em razão do descumprimento do direito de Consulta Prévia, Livre e Informada, com relação à instalação do Centro de Lançamentos de Alcântara na década de 80 e, posteriormente, ao Acordo de Salvaguardas Tecnológicas firmado entre os Estados Unidos e o Brasil para uso da Base Espacial.
“Além da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, outra organização internacional, agora a OIT, reconhece o direito dos quilombolas de Alcântara à titulação coletiva do território, à Consulta Prévia, Livre e Informada e a ações compensatórias pela violação dos direitos garantidos pela Constituição Federal e reconhecidos pelas organizações internacionais. Nenhum acordo com o governo será possível, se não forem respeitados esses direitos. Falta o governo brasileiro fazer a sua parte. Titulação Já!”, comemora Fátima Diniz Ferreira, militante do Movimento das Mulheres Trabalhadoras de Alcântara (MOMTRA).
Segundo o documento, o Conselho de Administração admitiu a reclamação apresentada e instalou um comitê tripartite para analisar a denúncia, composto por representantes de governo, empregador e trabalhador.
O Comitê solicita ao Governo que tome sem demora as medidas necessárias para realizar, conforme a legislação nacional vigente, estudos sobre o impacto social, espiritual, cultural e ambiental que a expansão do CLA teria nas comunidades quilombolas de Alcântara, em cooperação com eles. O governo brasileiro se manifestou sobre a reclamação em 2021, em 2022 e, em 2023, propôs conciliação voluntária, negada pelas autoras da reclamação.
“As comunidades de Alcântara esperam que o Estado cumpra as recomendações emitidas pela OIT como medida de justiça reparatória ao racismo e às graves violações de direitos a que foram submetidas ao longo de 40 anos, desde a instalação da Base de Lançamentos na ditadura militar”, afirma Leticia Marques Osorio, advogada dos Sindicatos proponentes da reclamação.
Sobre o Acordo de Salvaguardas
As conversas sobre o acordo já existiam há mais de vinte anos. Em 2019, durante uma visita aos Estados Unidos, o então presidente Jair Bolsonaro assinou o acordo que autoriza o uso comercial do Centro de Lançamentos de Alcântara, para lançamentos de foguetes e satélites.
O interesse do governo estadunidense reside no fato de que a Base de Alcântara está mais próxima do Equador e, portanto, geraria uma economia de combustível em comparação a outras bases no mundo. A ratificação do acordo foi enviada e aprovada pelo Congresso Nacional ainda naquele ano.
No entanto, em nenhum momento, as comunidades quilombolas de Alcântara – que já questionavam judicialmente as remoções de duas décadas antes – foram consultadas, nem tiveram respostas sobre o andamento da titulação.
O Centro de Lançamentos ocupa uma área de cerca de 78 mil campos de futebol e abriga 108 comunidades. Se a ampliação fosse adiante, mais de 40 comunidades seriam despejadas. Desde então as comunidades vivem o temor de novas remoções para ampliação da base espacial.
Os dados do Censo 2022, do IBGE, apontam que Alcântara é a cidade com a maior proporção de quilombolas do país. Ao todo, 84,6% dos moradores, cerca de 15.616 pessoas, se autodeclaram quilombolas.
Denúncia no Sistema Interamericano de Direitos Humanos
O caso já é alvo de denúncia no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, desde 2001, pela falta de titulação do território tradicionalmente ocupado por quase 200 comunidades quilombolas, além da instalação da base aeroespacial durante a década de 1980 sem a devida consulta e consentimento prévios, a expropriação e remoção das suas terras e inúmeros impactos socioeconômicos decorrentes desse processo, sem recursos judiciais para remediar a situação.
Entre 1986 e 1988, 312 famílias foram deslocadas à força de suas comunidades originais e reassentadas em sete agrovilas em condições que não lhes garantiu a mesma qualidade e quantidade de terra que possuíam antes, sem assistência técnica agrícola, com dificuldade de acesso ao mar – dificultando a pesca tradicional, e sem indenização adequada. Por consequência, essas famílias passaram a viver uma situação de pobreza, insegurança e vulnerabilidade.
A audiência na Corte Interamericana de Direitos Humanos ocorreu em Santiago do Chile, em abril de 2023, e a sentença ainda não foi emitida.
Brasil ratificou a Convenção n.º169 há vinte anos
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é o primeiro documento internacional vinculante que aborda os direitos dos povos indígenas e tribais. Foi adotada em Genebra em 27 de junho de 1989 e entrou em vigor internacionalmente em 5 de setembro de 1991.
No Brasil, foi aprovada pelo Decreto Legislativo n.º 143 em 20 de junho de 2002 e entrou em vigor em 25 de julho de 2003. Foi promulgada pelo Decreto 5.051/2004 em 19 de abril de 2004 e atualmente está vigente pelo Decreto n.º 10.088 de 05 de novembro de 2009. A OIT é uma agência especializada das Nações Unidas dedicada à promoção da justiça social e dos direitos humanos e laborais internacionalmente reconhecidos.
Imagem de capa: A comunidade Quilombola Arenheguaua situa-se a 54 quilômetros da cidade de Alcântara e possui aproximadamente 80 famílias. A comunidade não está na região que foi tomada pela Base Espacial de Lançamento. Crédito: Ana Mendes/Imagens Humanas.