A Corte Interamericana de Direitos Humanos divulgou nesta quarta-feira (4) a sentença que responsabiliza o Brasil pelo desaparecimento forçado de 11 jovens negros no Rio de Janeiro em 1990 após abordagem policial. O Código Penal brasileiro ainda não tipifica a violação.
A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, divulgada hoje (4), condenando o Brasil pelo desaparecimento forçado de 11 jovens negros moradores da favela de Acari, na cidade do Rio de Janeiro, em 1990, traz aspectos contundentes no enfrentamento à violência policial.
Conhecido como Chacina de Acari, o caso Mães de Acari (ou Leite de Souza Vs. Brasil), foi apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2006, por meio do Projeto Legal, com apoio de Criola e da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência.
Sete das vítimas eram adolescentes. Os onze jovens estavam numa chácara em Magé, município da Baixada Fluminense, quando foram levados pelos homens que se identificaram como policiais. Eles nunca mais foram vistos.
Na busca por justiça, suas mães e familiares criaram o grupo Mães de Acari, que até hoje é essencial na luta contra o extermínio de jovens negros e a violência policial no Brasil. Em 1993, porém, a liderança do movimento social Edimea da Silva Euzébio e sua sobrinha, Sheila da Conceição, foram executadas a tiros no estacionamento da estação do metrô da Praça XI, no Centro da capital fluminense.
A decisão da Corte traz obrigações de memória, reparação, não-repetição e ações de combate à violência de Estado. Entre as determinações que o Brasil está obrigado a cumprir, destacam-se:
- tipificar o crime de desaparecimento forçado, conforme os padrões internacionais;
- realizar um diagnóstico sobre a atuação de “milícias” e grupos de extermínio no estado do Rio de Janeiro, propondo recomendações e ferramentas, medidas, estratégias e soluções administrativas, judiciais, legislativas, policiais, entre outras, para combater essas organizações;
- criar, no bairro de Acari, na Zona Norte do Rio, um espaço de memória em homenagem: às vítimas, à Edimea da Silva Euzébio e à sua sobrinha, Sheila da Conceição – familiares assassinadas por PMs em 1993, e às demais integrantes do movimento Mães de Acari.
A sentença também responsabiliza o Estado brasileiro pelo tratamento discriminatório, pautado no racismo e na discriminação com relação ao local de moradia, sofrido pelas mães das vítimas na busca por justiça, e ainda por não conduzir adequadamente as investigações referentes a esse caso, sendo condenado a continuar as investigações referentes às vítimas de desaparecimento forçado, para elucidar o seu paradeiro.
A decisão é uma vitória das Mães de Acari, do Projeto Legal, da Rede de Comunidades e Movimentos pela Violência e de Criola, às quais a Justiça Global parabeniza pelo esforço na busca por uma resposta eficaz a essa grave violação.
Desaparecimentos forçados no Brasil após o regime empresarial-militar
Infelizmente, os casos de desaparecimentos forçados (e de tortura), como ilustrado no filme Ainda Estou Aqui (Dir.: Walter Salles, Brasil), lançado em novembro deste ano, não cessaram com o fim do regime período militar-empresarial. Ao menos, nas favelas, periferias e demais territórios racializados do país.
Além do caso da Chacina de Acari, outros casos emblemáticos sobre o tema são o do pedreiro Amarildo de Souza, 43 anos, no Rio, e de Davi Fiúza, de 16 anos, ambos em 2013.
Saiba mais: Quantos Amarildos produz o Brasil – entrevista com o sociólogo Fábio Araújo Lopes
A ocorrência dessas violações, de fazer desaparecer pessoas, envolvendo execuções sumárias, ocultação de cadáver e cemitérios clandestinos, especialmente na Baixada Fluminense, vem sendo denunciadas por diversas organizações.
O Fórum Grita Baixada, em parceria com o Observatório Fluminense, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), lançou o livro Desaparecimento forçado: vidas interrompidas na Baixada Fluminense (Autografia, 2024) e o documentário Desova (Dir.: Laís Dantas, 2023), com a Quiprocó Filmes.
No boletim temático sobre o assunto da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial sobre o assunto, de 2021, a organização destaca que cerca de 30% dos desaparecimentos do estado do RJ ocorreram na Baixada Fluminense. Foram mapeadas 21 áreas de descartes de corpos, dominadas majoritariamente pelas milícias.
Assunto foi levado à audiência na Corte Interamericana em fevereiro, no caso Almir Muniz
Ademais da militarização e da miliciarização, os desaparecimentos forçados também compõem a cena dos conflitos no campo do país. É o que evidencia o caso de Almir Muniz da Silva, trabalhador rural e defensor de direitos humanos da Paraíba. Ele foi visto pela última vez em 2002, após ter denunciado a participação de policiais nas milícias rurais.
O caso também é analisado pela Corte Interamericana após denúncia da Justiça Global, da Comissão Pastoral da Terra da Paraíba, da Dignitatis e da Associação dos Trabalhadores Rurais do Assentamento Almir Muniz. A audiência ocorreu em fevereiro deste ano.
Durante o julgamento, as peticionárias destacaram a necessidade de que a legislação brasileira tipifique o desaparecimento forçado como crime, o que ainda não ocorreu mesmo 39 anos após a redemocratização.
Na ocasião, o Estado admitiu as falhas na investigação, mas não reconheceu o desaparecimento forçado no caso.
Foto da capa: Manifestação do movimento Mães de Acari em 1996. Crédito: Alaor Filho.