Forças armadas violam direitos e pressionam, ao menos, três territórios quilombolas

A organização apresentou ao relator especial sobre os direitos dos povos indígenas a grave situação de violações aos direitos territoriais, culturais e humanos cometidas pelas Forças Armadas nas comunidades quilombolas de Alcântara (MA), Marambaia (RJ) e Rio dos Macacos (BA)

Quilombolas de Marambaia lutam contra a extinção da comunidade pressionada pelas imposições da Marinha. Novembro de 2022. Foto: Justiça Global/Emily Almeida
Quilombolas de Marambaia lutam contra a extinção da comunidade pressionada pelas imposições da Marinha. Novembro de 2022. Foto: Justiça Global/Emily Almeida

A Justiça Global enviou ao Mecanismo de Especialistas sobre Direito dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU), composto por sete membros de diversas regiões do mundo, um relatório sobre as violações de direitos operadas pelas Forças Armadas do Brasil em comunidades quilombolas – com destaque ao território de Alcântara (MA), Marambaia (RJ) e Rio dos Macacos (BA). O documento, enviado nesta terça-feira (31), deve contribuir para um estudo realizado pelo mecanismo especial com objetivo de avaliar o impacto da militarização sobre os direitos dos Povos Indígenas, conforme deliberado na última sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU de 2022.

No relatório enviado, a Justiça Global destaca que os três casos têm em comum o fato de os empreendimentos terem sido elaborados durante a ditadura militar civil-empresarial vigente no Brasil entre os anos de 1964 e 1985. Mesmo após a redemocratização em 1988, as comunidades – em sua maioria não adequadamente tituladas – ainda sofrem a interferência direta, sobretudo da Marinha e da Aeronáutica. Entre os principais efeitos da presença dos militares nesses territórios, estão a negação do pleno direito de propriedade, a ingerência nos seus modos de vida e a falta de políticas públicas de qualidade.

O mecanismo justifica a necessidade da análise com base no artigo 30 da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas que diz que “as atividades militares não devem ocorrer nas terras ou territórios dos Povos Indígenas, a menos que justificado por um interesse público relevante ou de outra forma livremente acordado ou solicitado pelos Povos Indígenas em questão” e que “os Estados devem realizar consultas efetivas com os Povos Indígenas interessados, por meio de procedimentos apropriados e, em particular, por meio de suas instituições representativas, antes de usar suas terras ou territórios para atividades militares”. O material vai servir para uma discussão realizada O material vai servir para um estudo prévio a ser apresentado na 16a sessão anual do mecanismo, em julho, e na sequência, na sessão do Conselho de setembro.

Dados preliminares do IBGE dão conta da existência de mais 5.972 comunidades quilombolas no Brasil. Mas o próximo Censo, realizado em 2022, será o primeiro a recensear e identificar quilombolas na pesquisa. Ainda assim, apenas 3.495 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP) – órgão que teve sua atribuição atacada pelo governo de Jair Bolsonaro, apenas 295 tiveram efetivamente seus territórios titulados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

Os três casos relatados são considerados pela Justiça Global como emblemáticos dos conflitos fundiários e sociais enfrentados pelas comunidades frente às Forças Armadas sob o obscuro argumento de segurança nacional e, nos quais, a organização atua em conjunto com as representações locais para denunciar aos órgãos internacionais as violações cometidas pelo Estado brasileiro. “A situação evidencia um racismo institucional operado pelos militares desde a ditadura militar, que não sofreu quaisquer rupturas com a redemocratização e que segue vulnerabilizando essas comunidades diuturnamente debaixo dos olhos do Estado e autoridades competentes. O argumento da defesa da soberania nacional recorrentemente utilizado pelas forças armadas não serve para violar direitos e vidas dos cidadãos e nacionais. Não existe defesa da soberania nacional, às custas de um povo – os quilombolas – cuja história é inegavelmente de construção da identidade nacional”, observa a organização no documento.

Quilombolas da Ilha de Marambaia x Marinha

Ainda nos anos 1970, a Ilha de Marambaia foi entregue à Marinha para realizar treinos de fuzileiros navais, além de atender outros interesses da corporação, atropelando a existência do quilombo que se organizou no local desde a extinção formal da escravidão. Desde então, a comunidade vem sofrendo uma série de pressões e transtornos causados pela presença dos militares.

As restrições de visitas, a proibição de cultivo de roçados, de reformas ou construção de novas casas, o acesso controlado pelos militares, os riscos da exposição aos treinamentos, além da falta de acesso a serviços básicos como saúde, transporte e moradia, são alguns dos fatores que têm afastado os jovens e colocado em risco a existência da comunidade tradicional.

Diante da situação, tramita na Comissão Interamericana de Direitos Humanos uma denúncia da comunidade contra o Estado brasileiro.

Rio dos Macacos x Marinha

Os mais de duzentos anos de história da comunidade quilombola de Rio dos Macacos, no município de Simões Filhos, a menos de 30 quilômetros de Salvador, não foram considerados quando, na década de 60, a prefeitura doou as terras para a Marinha. Com a construção da Base Naval de Aratu a partir de 1971, os moradores precisam passar por uma barreira militar para acessar a comunidade. Diante da disputa judicial e territorial, os quilombolas sofrem violência e ameaças por militares, chegando a casos de assassinatos de lideranças. Mesmo com a titulação concluída pelo INCRA, os quilombolas de Rio dos Macacos não conseguem ter acesso a água potável, já que a única fonte próxima – uma barragem que, inclusive, sobre riscos de ruptura – está sob controle das Forças Armadas.  Diante da situação, a Corte da OEA determinou, em 2020, que o Brasil adotasse medidas urgentes para proteger o quilombo.

Alcântara x Aeronáutica

Com uma das maiores populações quilombolas do país – mais de 200 comunidades, o Quilombo de Alcântara enfrenta, desde a década de 1980, expulsões de famílias de suas terras para a construção de uma base espacial de lançamentos de foguetes. Com as reiteradas ampliações do projeto, como se viu em 1991 e em 1998, as remoções compulsórias continuaram e, ao menos, 1.112 famílias já foram removidas. As demais vivem sob constante ameaça de expulsão. Ressuscitada pela gestão de Michel Temer e encaminhada por Jair Bolsonaro, uma nova decisão arbitrária aos direitos dos quilombolas foi assinada pelo Brasil com os Estados Unidos: o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas. Na prática, o projeto representa mais ameaças de remoções de territórios ancestrais.

Os fatos levaram as lideranças da comunidade a procurar as instâncias internacionais, com denúncia à Corte Interamericana de Direitos Humanos e à Organização Internacional do Trabalho.

 

 

 

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