O Grupo de Trabalho da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos estará no Brasil, de 7 a 16 de dezembro, para verificar de perto as várias violações a direitos humanos provocadas por companhias no país. Entre os casos que serão observados pelos representantes da organização está o crime cometido pela Samarco – de propriedade da brasileira Vale e da anglo-australiana BHP – que matou 13 pessoas com o rompimento de uma barragem de rejeitos em Mariana (MG). O grupo, que estará representado pelo russo Pavel Sulyandziga, também vai visitar Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Pará, conhecendo de perto as situações de cada local, assim como os afetados por elas.
A visita ocorre por meio de um convite do governo brasileiro, sendo que agenda foi definida pelos representantes da ONU por meio de sugestões enviadas por organizações e movimentos sociais brasileiros, que fizeram questão de ressaltar a necessidade de ouvir diretamente as vítimas da atuação das empresas. No Pará, por exemplo, será a oportunidade de ouvir relatos sobre as diversas violações causadas pela construção da hidrelétrica de Belo Monte. O Consórcio Norte Energia, responsável pela usina, recebeu licença de operação do governo, mesmo descumprindo condicionantes para garantia da vida, saúde e integridade física das populações afetadas pelo projeto. A missão pode ser uma oportunidade para apontar a fragilidade dos mecanismos de regulação das empresas em matéria de direitos humanos e revelar assim a conivência do governo brasileiro com as violações cometidas pelas corporações. Outros pontos importantes dessa agenda são a perda do status de ministério da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, bem como a alta rotatividade no comando da pasta.
A Justiça Global é uma das organizações que indicaram casos a serem acompanhados pelo GT da ONU. Para Melisanda Trentin, coordenadora da Justiça Global, “a visita do GT da ONU ao Brasil neste momento pode ser importante para visibilizar casos graves de violações, mesmo entendendo que o GT trabalha a partir de uma perspectiva de que as empresas promovam direitos humanos de forma voluntária, enquanto a sociedade civil brasileira cobra a responsabilização jurídica delas”.
O GT foi criado em 2011 para promover a implementação dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, lançados pelo ex-representante especial do Secretário-Geral da ONU para Direitos Humanos, Empresas Transnacionais e Outros Negócios, John Ruggie. Uma das atribuições do Grupo de Trabalho é realizar visitas aos Estados para relatar violações de Direitos Humanos por empresas e avanços na proteção desses direitos pelo Estado. Ao final da visita, as informações coletadas serão reunidas em um relatório, que será apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Outro ponto enfocado na missão, desta vez na passagem pelo Rio de Janeiro, será a participação das empresas nas Olimpíadas de 2016, que levaram à remoção de milhares de famílias, assim como a gentrificação e militarização de áreas pobres em toda a cidade. O Rio também ganha destaque negativo por causa dos problemas com o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), assim como pela TKCSA (Thyssen Krupp Companhia Siderúrgica do Atlântico). Além disso, foram pautadas agendas em São Paulo e em Brasília para tratar de outros pontos, como a propriedade intelectual dos medicamentos e os acordos bilaterais assinados pelo Brasil (veja a lista completa das pautas abaixo).
As organizações da sociedade civil que incidiram na construção da agenda de visitas do GT são: Amigos da Terra Brasil; Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA); Conectas Direitos Humanos; Fórum da Amazônia Oriental (Faor); Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE); Federação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF); Fórum de Trabalhadores por Verdade, Justiça e Reparação; Fórum da Amazonia Oriental (FAOR); Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI); Homa – Projeto Direitos Humanos e Empresas; Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE); Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc); Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PAcs); Instituto Equit; Internacional dos Serviços Públicos Brasil; Justiça Global; Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip); Rede Social de Justiça e Direitos Humanos; Serviço Interfranciscano de Justiça Paz e Ecologia (Sinfrajue); e Terra de Direitos.
Veja abaixo os casos que foram apresentados pela sociedade civil como prioritários ao GT da ONU:
Mariana (Minas Gerais): No dia 05 de novembro de 2015, a barragem de rejeitos de mineração Fundão, operada pela mineradora Samarco se rompeu no Município de Mariana, Minas Gerais. Até o momento, foram treze as mortes confirmadas, mas a população total residente na bacia do Rio Doce, a principal afetada pelo desastre, é da ordem de 3,2 milhões. A lama tóxica chegou até o Estado do Espírito Santo, alcançando, inclusive, o mar, causando a destruição de ecossistemas inteiros, poluindo a água e o solo, deixando centenas de pessoas desabrigadas e sem água para beber, além de ter destruído e inviabilizado plantações e criações de animais. Trata-se de uma das maiores tragédias socioambientais da história do país.
Belo Monte (Pará): No Pará, a construção da hidroelétrica de Belo Monte tem causado muitas violações de direitos humanos contra o modo de vida indígena e tradicional, o direito à moradia, o direito à terra e território e o direito ao trabalho digno. O MAB estima em 40 mil a quantidade de afetados pela construção da barragem que está a ponto de entrar em funcionamento, deixando muitas pessoas sem a devida compensação. A empresa responsável pela hidroelétrica é a Norte Energia, que é um consórcio composto por investidores públicos e privados.
TKCSA (Rio de Janeiro): localiza-se no bairro de Santa Cruz, na Baía de Sepetiba, Rio de Janeiro. Trata-se da maior siderúrgica da América Latina operando sem licença desde 2010 e causadora de impactos ambientais massivos. É responsável pelo aumento em 76% de emissões de CO2 na cidade do Rio de Janeiro, pela inviabilização da pesca local, pelo aumento de doenças dermatológicas, respiratórias e oftalmológicas entre os moradores do seu entorno, e provocar enchentes no bairro de Santa Cruz.
COMPERJ (Rio de Janeiro): O COMPERJ (Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro) é um empreendimento da Petrobrás, uma empresa estatal. Sua operação afeta as vidas e o ecossistema da Baia de Guanabara. Desde 2009, sete pescadores, que possuíam relação com o conflito, foram mortos em circunstâncias desconhecidas. O defensor de direitos humanos – também presidente da AHOMAR (Associação dos Homens e Mulheres do Mar da Baía de Guanabara) – Alexandre Anderson está sob ameaça desde 2009.
Olimpíadas 2016 (Rio de Janeiro): A realização de megaeventos no Rio de Janeiro tem afetado negativamente as pessoas que habitam a cidade. Exemplos não faltam: remoções forçadas de comunidades inteiras, gentrificação, violação aos direitos dos trabalhadores informais e militarização. As empresas envolvidas nas obras de construção civil são: OAS, Delta, Odebrecht, Camargo Correa e Andrade Gutierrez.
Direito à saúde, acesso a medicamentos e propriedade intelectual (Brasília): O direito à saúde no Brasil encontra-se ameaçado por empresas farmacêuticas. Estas empresas têm agido no Congresso para que sejam criadas medidas TRIP-plus. Na Câmara dos Deputados o projeto de lei que revê a legislação existente sobre patentes tem sofrido intenso lobby para aprovar um texto que representa um retrocesso para a saúde pública. Além disso, no Judiciário, empresas farmacêuticas por um lado têm questionado o uso legítimo das flexibilidades do TRIPS e por outro buscado a aplicação de medidas TRIPS-plus não previstas na lei. Estas condutas privam do direito à saúde a milhões de brasileiros.
Acordos bilaterais de investimentos: O Brasil tem assinado recentemente acordos de investimentos com diversos países, entre eles México, Angola, Moçambique e Colômbia. Neles, em vez de incluir um vocabulário de direitos humanos, tem utilizado dispositivos de responsabilidade social corporativa (RSC) com uma linguagem de baixa normatividade, recheada de verbos exortatórios, como “incentivar”, “fomentar”, “estimular” e “apoiar”, que geram insegurança jurídica. Tais dispositivos ficam aquém dos mais altos parâmetros de direitos que deixam claro que as empresas devem ter como referencial normativo todos os direitos internacionalmente reconhecidos.
Suspensão da Lista Suja do Trabalho Escravo: Em dezembro de 2014, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, garantiu uma liminar à Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) suspendendo a “lista suja” do trabalho escravo (cadastro de empregadores flagrados com esse tipo de mão de obra). A ONG Repórter Brasil solicitou, com base na Lei de Acesso à Informação (12.527/2012) uma relação que, na prática, teria um conteúdo o mais próximo e atualizado o possível do que seria a “lista suja”. A lista formada com estas informações é conhecida como Lista da Transparência. Atualmente, as empresas, incluindo bancos, podem utilizar essa lista para monitorar as condições de direitos humanos entre seus fornecedores e clientes. Em abril de 2015, o governo brasileiro lançou uma nova portaria sobre a lista suja, detalhando ritos de defesa para as empresas e buscando responder questionamentos levantados pelo STF. Porém, o relançamento da lista sob nova portaria ainda não foi feito, porque o processo segue em andamento ao STF e teme-se que o ato seja visto como um desrespeito à decisão do STF. Ao mesmo tempo, a ONG Repórter Brasil e sua direção tornaram-se alvo de processos judiciais por conta da divulgação da Lista da Transparência, inclusive de natureza criminal.
Envolvimento de empresas em violações aos Direitos Humanos durante a Ditadura Militar: As graves violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura civil-militar brasileira (1964 – 1985) contaram com ampla participação de grandes empresas, que até hoje não foram responsabilizadas. Em setembro deste ano o Ministério Público Federal aceitou representação contra a Volkswagen por graves violações de direitos humanos no interior da empresa, em coordenação com outras empresas na perseguição, vigilância, tortura e elaboração de listas de trabalhadores perseguidos no âmbito de suas fábricas, em cooperação aberta com órgãos de repressão política da ditadura civil-militar. A iniciativa foi do Fórum dos Trabalhadores por Verdade, Justiça e Reparação, assinada por todas as dez centrais sindicais brasileiras, por juristas eminentes e membros das Comissões de Verdade.
Falta de proteção dos defensores de direitos humanos, especialmente os envolvidos na defesa da terra e do território: A situação dos defensores e defensoras de direitos humanos no país é especialmente vulnerável, em virtude de tais ativistas lutarem contra projetos econômicos patrocinados pelo próprio Estado, tais como a mineração, construção de megaempreendimentos na Amazônia e o agronegócio, e que estão associados à opção política em relação a um tipo de desenvolvimento. Muitos desses defensores encontram-se incluídos no Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH). Assim, se por um lado a inclusão destes defensores no programa representa um reconhecimento do Estado brasileiro em relação às ameaças sofridas, por outro, o Estado nem assim consegue ofertar uma proteção efetiva às pessoas incluídas no programa. Isto porque apenas no Estado de Minas Gerais o programa tem funcionado efetivamente. Nos estados do Pará e Mato Grosso do Sul, onde há maior número de defensores ameaçados, não há proteção efetiva por parte do Poder Público. A inefetividade do Programa Nacional se dá devido à falta de peso político que a pasta de Direitos Humanos tem no governo federal, que se traduz em ausência de um marco legal que o estabeleça, uma dotação orçamentária muito baixa e uma alta rotatividade nos cargos da Secretaria de Direitos Humanos – do ministro à equipe técnica do PPDDH. A proteção fornecida pelo PPDDH, desta forma, hoje tem se limitado em muitos dos casos ao monitoramento telefônico. A debilidade do PPDDH se constata especialmente no não enfrentamento das causas estruturais das violações e ameaças.