Em parceria, organizações levam propostas à 10ª sessão do Grupo de Trabalho da ONU que busca regular as atividades de empresas transnacionais com tratado internacional vinculante.
Começou nesta segunda-feira (16), em Genebra, na Suíça, a 10ª sessão do grupo de trabalho intergovernamental aberto da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre corporações transnacionais e outras empresas comerciais com respeito aos direitos humanos para discutir um tratado vinculativo sobre o tema. O encontro, que vai até 20 de dezembro, vai trabalhar a partir do quarto rascunho do instrumento.
A sessão segue o roteiro sugerido pelo presidente-relator do grupo de trabalho, o embaixador do Equador, Marcelo Vásquez Bermúdez, apresentado em março e a aberto à consulta em abril. A lista de especialistas foi apresentada em julho, após seleção entre as 102 inscrições feitas com o Escritório do Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), conforme orientado pelo Conselho de Direitos Humanos.
Neste ano, a Justiça Global e o Homa – Instituto Brasileiro de Direitos Humanos e Empresas realizaram uma parceria para participar das negociações. A comitiva, formada pela professora-doutora Manoela Carneiro Roland e a pesquisadora Ana Laura Marcondes de Souza Figueiredo, está no Palácio das Nações com as credenciais da Justiça Global para incidir sobre o tratado.
As organizações lançaram um documento com comentários e sugestões para o rascunho em discussão, no qual destacam o projeto de lei brasileiro que cria o Marco Nacional sobre Direitos Humanos, em discussão na Câmara dos Deputados (PL 572/2002). A matéria tramita aguarda parecer da relatoria na Comissão de Desenvolvimento Econômico.
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Entre as principais propostas, o texto sugere uma linguagem mais robusta e inclusiva para evitar interpretações ambíguas, além da inclusão de “violações de direitos humanos” em vez de “abusos” e a responsabilidade das empresas em toda a cadeia produtiva. O documento propõe obrigações específicas para empresas, incluindo a responsabilidade solidária e a primazia dos direitos humanos sobre interesses econômicos ou acordos de desenvolvimento.
As organizações reforçam a necessidade do respeito à Convenção n.o 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê consulta prévia, livre e informada a comunidades tradicionais e povos originários, além da autodeterminação desses grupos, bem como a centralidade do sofrimento das pessoas atingidas.
Também recomenda assegurar acesso à justiça e à compensação integral, destaca a necessidade de sanções proporcionais e efetivas e a criação de um fundo de reparação financiado pelas empresas responsáveis. Outro aspecto recomendado no documento é a criação de monitoramento independente e participação ativa da sociedade civil na formulação de políticas públicas.
Alto Comissário destaca violência contra defensores de direitos humanos
O Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Volker Türk, começou sua declaração na abertura do evento lembrando do assassinato do escritor e ativista ambiental nigeriano Ken Saro-Wiwa, junto com outros oito defensores de direitos humanos, há quase 30 anos, na luta contra a poluição por óleo no delta do rio Ogoni. Para Türk, esse foi um dos momentos decisivos para o movimento internacional de negócios e direitos humanos.
Ele lembrou da interconexão entre as complexas cadeias de valor globais do mundo contemporâneo, que “significam que bens e serviços passam por diferentes países com diferentes sistemas legais e regulatórios”. Logo depois, tuitou: “O movimento empresarial e de direitos humanos tem um objetivo vital: garantir que os lucros não venham às custas das pessoas ou do planeta. Hoje, pedi novamente um instrumento juridicamente vinculativo sobre negócios e direitos humanos – para evitar novos abusos de direitos humanos, novos desastres e nova devastação ecológica”.
The business & human rights movement has a vital aim: to ensure profits don’t come at the expense of people or planet. Today, I called again for a legally-binding instrument on business & human rights-to prevent new human rights abuses, new disasters & new ecological devastation. pic.twitter.com/XhjvWNRAeS
— Volker Türk (@volker_turk) December 16, 2024
Ele completou que a adoção de um instrumento juridicamente vinculativo estabeleceria um padrão global de conduta e criaria um campo de jogo nivelado em todo o mundo, priorizaria os direitos humanos, ajudaria a prevenir desastres corporativos e ofereceria às vítimas um caminho claro para a justiça.
O Business and Human Rights Resource Centre elabora uma página onde faz comentários diários sobre as negociações. Acesse aqui. |
Grupo de Trabalho busca responder à insuficiência de outros instrumentos
O GT foi criado em 26 de junho de 2014, a partir da resolução 26/9, após um debate crítico realizado no ano anterior durante sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, quando foram apontados diversos problemas relacionados aos dez Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos, que encorajam os países a adotarem Planos Nacionais de Ação.
No entanto, diversas organizações – sobretudo da América Latina, da África e da Ásia – têm apontado a insuficiência desses instrumentos. Afinal, não são legalmente vinculativos (de cumprimento obrigatório) e servem apenas como referência global para políticas e práticas empresariais responsáveis.
Uma das críticas é que os Princípios Orientadores acabam reproduzindo a linguagem corporativa, caminhando no sentido da autorregulação das empresas e não impõem sanções para empresas que violam direitos humanos. Além disso, operam na lógica multistakeholder, ou seja, busca um suposto consenso entre “partes interessadas”, ignorando o desequilíbrio de poder existente entre as empresas transnacionais, os governos e a sociedade civil.
Em contraponto à formação dos princípios orientadores, que teve a forte atuação do setor empresarial, a participação ativa de comunidades afetadas, organizações da sociedade civil, sindicatos e movimentos sociais aposta na construção do Tratado Global como um instrumento que seja capaz de responsabilizar empresas por violações de direitos humanos.
Campanha Global denuncia tentativas de boicote a processo histórico
Em nota à imprensa publicada nesta terça-feira (17), a Campanha Global para Reivindicar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade (Campanha Global) denunciou as tentativas de boicote ao processo do tratado nessas negociações, com influência de entidades corporativas no processo.
A começar pela mudança abrupta de data: o evento seria no final de outubro, mas foi adiado em anúncio realizado um mês antes. Tal fato impossibilitou a participação ou, pelo menos, trouxe encargos logísticos e financeiros para grupos da sociedade civil presentes e aos Estados, especialmente, do Sul Global.
“Mesmo assim, a Campanha Global continua determinada a fazer com que as demandas de suas mais de 260 organizações sejam ouvidas. Uma delas é o escopo do tratado, que continua sendo um ponto contestado nas negociações”, aponta a nota.
A rede, da qual a Justiça Global faz parte, é formada por movimentos sociais, organizações da sociedade civil, sindicatos e comunidades afetadas pelas atividades de corporações transnacionais (TNCs, no inglês, TransNational Corporations), representando 260 milhões de pessoas globalmente.
O documento destaca a expectativa para as negociações deste ano, tendo em vista a aprovação da primeira resolução adicional no Conselho de Direitos Humanos da ONU, que traz recursos e capacidade adicionais para realizar as negociações.
Leia a nota na íntegra (em inglês): 10th session of Historical negotiations in the UN to regulate transnational corporations bring life to a multilateral system in crisis
Em 2023, a Campanha Global compilou os argumentos a serem defendidos nas negociações do Tratado Vinculante, que consolidam demandas de comunidades afetadas, povos indígenas, sindicatos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil, de modo que o instrumento possa regular efetivamente as atividades das empresas e para abordar as assimetrias geradas pelo poder imensurável que as transnacionais exercem sobre suas cadeias de valor e produção às custas da soberania dos Estados e dos povos.
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