“A noite não adormece
nos olhos das mulheres”
(Conceição Evaristo)
Para nós, mulheres, cada direito conquistado é o resultado de muita luta e resistência, não apenas contra mandos e desmandos de governos autoritários e conservadores que insistem em tirar nossos direitos fundamentais, ou das empresas que expropriam nossos territórios, devastam nossas terras e rios e que ainda financiam, nas cidades, a militarização das nossas favelas, ou de uma legislação que impede que tenhamos domínio sobre nossos próprios corpos. Lutamos, cotidianamente, contra o machismo e o patriarcado entranhado na sociedade, que nos silencia, desqualifica e mata, pela nossa condição de mulher. Para nós, mulheres negras, a situação é agravada pela ausência de uma política de reparação histórica, que nos condenou a empregos com baixa remuneração e de reminiscência escravocrata, condições precárias de habitação, saúde e educação e uma política de criminalização da pobreza, que nos encarcera. Estamos mobilizadas pelo direito à vida, pelo exercício pleno da liberdade e pelo acesso à nossa história.
A luta é árdua. No Brasil, a cada 90 minutos uma mulher é assassinada. A taxa de feminicídios é a quinta maior no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).
É nesse cenário que estão inseridas as defensoras de direitos humanos. Só neste ano, de janeiro a novembro, o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos registrou o assassinato de sete mulheres que atuam na luta pela terra, território e meio ambiente, contra a violência institucional, a tortura, o racismo, o machismo, contra as violações de direitos humanos cometidas por empresas e no enfrentamento de um modelo de desenvolvimento violador de direitos. Um exemplo é o da quilombola Francisca Chagas, do Maranhão, que foi estuprada e morta. E não é um caso isolado. Recebemos diversos relatos de defensoras que são hostilizadas, ameaçadas e atacadas por sua condição de mulher.
Para dar visibilidade a esse quadro e à luta das defensoras, a Justiça Global tem a honra de homenagear, a cada ano, mulheres que estão na linha de frente na luta pelos direitos humanos no Brasil. Instituída em 2014, a Homenagem Maria do Espírito Santo Silva é uma reverência ao papel essencial que essas defensoras desempenham, desafiando poderes políticos e econômicos responsáveis por violações de direitos humanos, sociais, culturais e ambientais. Em 2016, celebramos com Djanira Krenak, liderança povo Krenak, Dona Julia Procópio, da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, Iza Cristina Bello (a Índia) e Lurdilane Gomes da Silva (a Ludma), do Movimento dos Atingidos por Barragem, Sandra Quintela, do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul e Wilma Melo, do Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões.
Tenho nas veias sangue de ancestrais.
Levo a vida num ritmo de poema-canção,
Mesmo que haja versos assimétricos,
Mesmo que rabisquem, às vezes,
A poesia do meu ser,
Mesmo assim, tenho este mantra em meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão.”
(Esmeralda Ribeiro)
Desde a sua fundação, há 17 anos, a Justiça Global vem trabalhando a temática das defensoras e defensores e sua contribuição no enfrentamento às violações de direitos e no fortalecimento da democracia. Em 2004, participamos da formação do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos e passamos a integrar a Coordenação Nacional do Programa de Proteção dos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) do governo federal, como uma das cinco organizações representantes da sociedade civil.
A nossa experiência nesses espaços, com o acompanhamento de numerosos casos e com a atuação em atividades de formação nessa temática nos possibilitou a construir um entendimento de que são defensoras e defensores de direitos humanos todas as pessoas, grupos, organizações, povos e movimentos sociais que atuam na luta pela eliminação de todas as violações de direitos e liberdades fundamentais dos povos e indivíduos. Inclui-se aí aquelas e aqueles que buscam a conquista de novos direitos individuais e coletivos, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais que ainda não assumiram forma jurídica ou caracterização formal específica. São contemplados ainda aquelas e aqueles que resistem politicamente aos modelos de organização do capital, às estratégias de deslegitimação e criminalização do Estado e à ausência de reconhecimento social de suas demandas. No tocante à coletividade, consideramos, por exemplo, que os movimentos sociais, sindicatos, associações, comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhos são defensores e defensoras de direitos humanos enquanto entes coletivos.
Ao longo de todos esses anos, identificamos características e padrões de violência perpetrados contra essas defensoras e defensores e coletividades, que se expressam pela criminalização por via de ações nas esferas legislativa e judicial e pelo tratamento do conflito social por meio de mecanismos coercitivos e punitivos, como o emprego de força policial, espionagem, milícias armadas e com a participação de outros atores públicos e privados, inclusive das grandes corporações que operam os principais meios comunicação.
Nos chama atenção as especificidades das violações às defensoras, que sofrem ataques morais, psicológicos, sexuais, desqualificação, invisibilização, criminalização, silenciamento do papel político que desempenham e tentativas de inferiorização por serem mulheres. Nesse sentido, é importante discutir e adotar medidas protetivas que incorporem a perspectiva de gênero, bem como destacar e criar espaços de fortalecimento da luta e do protagonismo de nossas defensoras. A criação desta Homenagem busca cumprir este papel de modo a reafirmar o nosso compromisso na luta pela superação do machismo e do patriarcado.
Neste ano de 2016 perdemos a nossa querida amiga e companheira, poetisa, Elaine Freitas, que lutou durante toda à vida por um mundo mais justo, livre do racismo e do machismo a quem dedicamos esta edição da Homenagem.