Julgamentos na Corte IDH expõem urgência da reforma agrária e da tipificação de desaparecimentos forçados no Brasil

O Estado brasileiro esteve duas vezes no banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos em fevereiro. No dia 08, os juízes analisaram o caso do trabalhador rural Manoel Luiz. Já no dia 09, o tribunal discutiu o caso da liderança rural sem-terra Almir Muniz.

Passados mais de vinte anos dos crimes, a Corte Interamericana de Direitos Humanos realizou em fevereiro as audiências de dois casos relacionadas a trabalhadores rurais sem-terra no Brasil, ambos da Paraíba: o do assassinato de Manoel Luiz, em 1997, e o desaparecimento forçado da liderança Almir Muniz, em 2002. As denúncias foram apresentadas ao Sistema Interamericano em 2004 e em 2009, respectivamente, pela Justiça Global, a Dignitatis e a Comissão Pastoral da Terra da Paraíba (CPT-PB), além da Associação dos Trabalhadores Rurais do Assentamento Almir Muniz, no último caso.

Nos dois julgamentos, em 08 e 09 de fevereiro, o governo brasileiro adotou a postura de reconhecer parcialmente as acusações de violar direitos humanos. Um passo positivo, mas que não parece considerar o longo caminho de tramitação e, sobretudo, de luta por justiça e reparação desdobrado até então, avaliaram as peticionárias após as alegações apresentadas.

Não há prazo determinado para que a Corte apresente as sentenças sobre os dois casos. Para a diretora-executiva da Justiça Global, Glaucia Marinho, a expectativa das peticionárias é que o tratamento das violações no âmbito da Corte impulsionem soluções estruturais para garantir direitos humanos.

“A Justiça Global espera que a sentença traga obrigações para que o Brasil avance com a reforma agrária, pondo fim às violações decorrentes do latifúndio. Os dois casos também são emblemáticos para discutir a associação entre o poder estatal e o poder privado na produção de violência, inclusive contra pessoas defensoras de direitos humanos”, afirma. 

Saiba mais sobre como foram os julgamentos:

Pedido de desculpa no caso Manoel Luiz precisa vir acompanhando de reconhecimento completo das violações

No primeiro julgamento, do caso Manoel Luiz, realizado em 08 de fevereiro, o Estado brasileiro reconheceu parcialmente sua responsabilidade internacional pela investigação ineficaz e pela demora excessiva do processo penal que apurou a morte do trabalhador rural e integrante do Movimento dos Sem-Terra. 

O crime aconteceu em 19 de maio de 1997, em São Miguel de Taipu, na Paraíba. Neste dia, Manoel e outros três trabalhadores sem-terra seguiam de uma mercearia local rumo a um acampamento da reforma agrária, quando foram atacados por seguranças particulares ao passarem por uma estrada na Fazenda Engenho Itaipu, de propriedade de Alcides Vieira de Azevedo. O processo penal do caso durou 16 anos. Um dos seguranças, que seria o autor dos disparos, nunca foi encontrado e os demais, foram absolvidos em 2013. O dono da fazenda não foi investigado. 

A vítima tinha 40 anos. Seu filho, Manoel Adelino, à época com quatro anos, prestou depoimento à Corte. Ele conta que, com medo, a família saiu do acampamento e enfrentou diversas dificuldades. Sua mãe, Edileuza Adelino, teve complicações de saúde física e psicológica e, por isso, não conseguiu mais cuidar dele. Ela morreu alguns anos depois. A mãe de Manoel Luiz também teve problemas de saúde depois de sua morte e até hoje aguarda que a justiça seja feita. 

Atualmente trabalhador informal, Adelino parou de estudar ainda criança e passou a vender doces nas ruas ou trabalhar em roçados. “Eu passei a morar com minha tia e me lembro que saía com meus primos para pedir comida”, contou. Ele disse que a família nunca recebeu qualquer suporte do Estado durante ou depois da investigação e do processo penal. 

Brasil vai a tribunal da OEA pelo assassinato do trabalhador sem-terra Manoel Luiz da Silva

Manoel Adelino, filho do trabalhador rural sem-terra Manoel Luiz, presta seu testemunho à Corte Interamericana. Foto: Ruggeron Reis/Justiça Global.

As autoridades admitiram que foram responsáveis pela violação à integridade pessoal dos familiares de Manoel, mas não se manifestaram sobre as demais violações apontadas: direito à verdade e sua relação com a violência aos trabalhadores e trabalhadoras rurais; impactos na vida familiar durante as décadas que se passaram desde os fatos; e a necessidade de empreender modificações legislativas que garantam a não repetição de violações semelhantes.

O representante das vítimas, Eduardo Baker, advogado e coordenador de Justiça Internacional da Justiça Global, comentou sobre o reconhecimento do Estado, lembrando que os escritos de argumentação e provas foram apresentados, ao menos, há mais de um ano. “Não me parece razoável que esse reconhecimento seja feito apenas aqui. (…) Poderia tê-lo feito antes, com um debate sobre medidas de reparação e de não repetição em próprio território. E não seria necessário trazer o sr. Manoel até, fazendo com que reviva todo esse momento de angústia e sofrimento, como ficou evidente aqui”, disse. 

Em nota, a Justiça Global, a Comissão Pastoral da Terra Nordeste 2 e a Dignitatis, representantes das vítimas, pedem o reconhecimento dos demais itens apontados na denúncia e lembraram que apresentaram mais de vinte indicações de medidas de reparação e de não repetição para dar conta das lacunas estruturais que levaram aos fatos. Mas o reconhecimento do Estado não veio acompanhado de uma indicação de quais dessas medidas concretas serão implementadas. 

Leia a nota completa.

“A atuação de milícias rurais e sicários, como os que levaram à morte de Manoel Luiz, continua até hoje no campo. Em janeiro deste ano, um grupo de milicianos chamado Invasão Zero foi responsável pela morte da liderança indígena Nega Pataxó, na Bahia”, lembrou Tânia Maria de Souza, da CPT, também representante das vítimas, durante a sessão.

Um dos peritos convidados pelas representantes das vítimas, o advogado Aton Fon Filho, enfatizou que 16 anos do processo foram apenas usados em burocracias judiciais, “com recebimento de ofícios e cartas precatórias não cumpridas. As duas sessões de tribunal do júri foram intercalados com longos períodos”. 

Ele argumenta que, para que se comprove a violação de direitos e, portanto, a responsabilidade internacional do Estado, diz a Corte, não há que se determinar a culpabilidade e intencionalidade dos autores, nem mesmo identificar individualmente os agentes causadores, como no direito interno. “É suficiente que se demonstre a conivência do Estado e a sua falta de diligência em investigar e punir os responsáveis (…)”.

Assista o julgamento do Caso Manoel Luiz da Silva Vs. Brasil na íntegra:

Parte 1)

Parte 2)

Estado admite falha, mas não reconhece desaparecimento forçado no caso Almir Muniz

Almir Muniz da Silva era diretor da Associação de Trabalhadores Rurais da Itabaiana-PB e já vinha sendo ameaçado por denunciar uma série de violências policiais cometidas contra a classe. Em 29 de junho de 2002, no entanto, a família relata ter escutado sete disparos de onde estaria Almir Muniz, que passava pela fazenda administrada por um policial civil apontado com um dos principais suspeitos, Sérgio de Souza Azevedo. Desde então, nenhum vestígio seu foi encontrado. Não houve registro do seu desaparecimento pelas autoridades policiais e nenhuma investigação foi realizada. Em 2009, o caso foi arquivado.

Noberto Muniz da Silva, irmão de Almir, relata que os conflitos na região existem ao menos desde 1986. “Como um fazendeiro com tanta terra queria tomar espaço de onde tinha 57 famílias tentando sobreviver daquela área?”, relatou. Ele descreveu o enorme desafio na regularização fundiária e acrescenta que no ano do desaparecimento, seu irmão prestou depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa da Paraíba sobre a violência no campo em 2001, tratando sobre a existência de milícias privadas. “A gente vivia um terrorismo. O policial andava com um grupo armado”, disse.

Emocionado, Noberto falou à Corte sobre os impactos para a família.”Almir era um pai muito presente. Esse pesadelo já vai completar 22 anos. Jamais pensei que eu fosse tão longe para dar essa declaração aqui. Minha mãe ficou lá chorando(…). Os filhos deles eram todos menores de idade e a família dependia do pai para seu sustento. Na falta do pai, a família ficou desestruturada.(…) Procuramos por justiça e não fomos atendidos”, completou em seu depoimento.

Corte IDH julga caso de desaparecimento forçado de Almir Munir, liderança rural sem-terra

“Existem vários elementos indiciários, probatórios e contextuais sobre a participação de agentes estatais em seu desaparecimento”, destacou um representante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos na audiência, afirmando que nem as ameaças, nem o desaparecimento foram investigados e julgados apropriadamente pelas autoridades do país, além de não terem sido tomadas providências sobre a questão da reforma agrária e da violência contra trabalhadores rurais e defensores de direitos humanos na Paraíba, em particular, e no país, como um todo. 

Além de familiares de Almir Muniz, prestaram depoimentos na sessão Noaldo Meireles, advogado da Comissão Pastoral da Terra, Regina Saraiva, da Comissão Camponesa da Verdade, e o promotor de justiça Antônio Suxberger. Já a delegação brasileira incluiu representantes da Advocacia Geral da União (AGU), do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Em resposta à Corte, a pesquisadora Regina Saraiva, da Comissão Camponesa da Verdade, perita convidada pelas peticionárias, indicou haver um padrão essa atuação do Estado como agente de violações, “mas como ainda é frequente a parceria e a relação entre latifundiários e empresários para garantir essas práticas de violações de direitos humanos no meio rural no Brasil”.

Em suas perguntas, a advogada e diretora-executiva da Justiça Global, Daniela Fichino, defendeu que, com a tipificação do desaparecimento forçado pela legislação, a vinculação dos casos de desaparecimentos a agentes policiais atrai, desde o começo das investigações, a atuação do Ministério Público, em sua função de controle externo da atividade policial. Ela também lembrou que atualmente não há dados que quantifiquem as pessoas sob tutela do Estado que desapareceram.

“A falta de uma tipificação faz com que a investigação seja realizada sem a indicação de componentes criminais. O Brasil é signatário da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado e da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento de Pessoas e viola obrigações internacionais ao não tipificar o crime, o que leva ao apagamento do próprio fenômeno como uma grave questão social, que desnuda padrões históricos de violência institucional”, argumentou Fichino. 

Para os representantes do Estado, no entanto, os instrumentos legais já existentes são suficientes para dar conta dos casos de desaparecimento forçado, que a tipificação traria contradições com a Constituição, e que as investigações sobre o desaparecimento de pessoas devem ter urgência independente da notícia inicial de envolvimento de agente do Estado.

A AGU argumenta que a falha no caso se concentrou na falta de investigação e, sem provas, não pode afirmar que se trata de um desaparecimento forçado. O Estado argumenta que não seria possível concluir sobre a autoria do crime, tampouco se o principal suspeito atuava enquanto agente do estado ou sob sua autorização, apoio, ou consentimento.

A representante da Justiça Global lembrou a conveniência dos desaparecimentos forçados durante regimes autoritários, especialmente na América Latina: “um crime sem vítimas, que não pode ser devidamente averiguado, é um crime sem autores. Essa parece ser a racionalidade do Estado que se vale o Estado brasileiro em sua contestação quando afirma que não estão presentes os componentes de desaparecimento forçado, o que impede seu reconhecimento”. 

Fichino argumenta que, diante do contexto e conjunto de provas do caso, cabe ao Estado provar a não participação do policial e não o oposto, considerando que mesmo a produção de provas era de responsabilidade do Estado. Ela ainda rejeitou a alegação de que o policial agiria como particular, não como agente estatal, lembrando do crescente número de agentes do Estado, sobretudo de agentes policiais, na sustentação, na formação, apoio indireto e indireto a grupos de milícias e de extermínio, que redundam em mortes no campo e na cidade, na violação do direito à terra e ao território, na vulnerabilização da integridade física e psíquica de diferentes populações que lutam pelo reconhecimento e respeito a seus direitos. 

“A imbricação dessas redes de ilegalismos, que borram as fronteiras entre o legal e o ilegal, é o que sustenta historicamente a violência no campo no Brasil. Não é coincidência que o policial civil era o administrador da fazenda. Há posição de vantagem e de instrumentalização do poder público em prol de interesses privados”, c0mpletou.

Assista o julgamento do Caso Almir Muniz Vs. Brasil na íntegra:

Parte 1) 

Parte 2)

 

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