O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro alterou a redação da súmula n.º 70 e agora a orientação é que esses testemunhos sejam coerentes com outras provas do processo. Justiça Global alerta para o impacto da prática no encarceramento de pessoas negras e moradores/as de periferias.
Em uma rápida votação nesta segunda-feira (9/12), o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ) determinou uma nova redação à súmula de jurisprudência n.º 70, que permitia a condenação tendo apenas o depoimento do policial como testemunha. Os desembargadores votaram por vincular a palavra dos policiais às outras provas do processo legal, cabendo aos magistrados o dever de fundamentar essa decisão.
Uma súmula é criada quando uma interpretação jurídica é consolidada pelos magistrados de um tribunal a respeito de um tema após analisar vários casos semelhantes, ou seja, uma jurisprudência. É um precedente que contribui para reduzir incertezas e orientar decisões futuras.
Neste caso, o verbete orientava: “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”.
A nova redação, proposta pelo relator, o desembargador Luiz Zveiter, introduz a obrigatoriedade de coerência do testemunho policial com as demais provas constantes do processo e de fundamentação da decisão proferida pelo magistrado. Desta forma, argumenta, reduz a abertura da redação anterior que permitia interpretação no sentido de autorizar a condenação apenas com base no depoimento da autoridade policial.
Assim, o texto passou a ser: “o fato de a prova oral se restringir a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes autoriza a condenação quando coerente com as provas dos autos e devidamente fundamentado na sentença”.
O processo foi proposto pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ), que pediu ao Centro de Estudos Jurídicos (CEDES) do tribunal o “cancelamento ou, subsidiariamente, revisão do verbete 70 da Súmula da Jurisprudência Predominante”.
O diagnóstico da Defensoria apontou que sobretudo os julgamentos na primeira instância aplicavam o entendimento para justificar o uso do depoimento do policial como única prova para determinar condenações.
A DP-RJ, bem como o Ministério Público do Rio de Janeiro, concordaram com o novo texto, proposto pelo relator.
O desembargador Nagib Slaibi Filho foi o único que abriu divergência e votou pelo cancelamento. Ele citou o artigo 5º da Constituição. “Os direitos e garantias constitucionais fundamentais têm aplicação imediata. Os direitos que decorrem da constituição não excluem outros decorrentes dos tratados. A fonte única do direito não é mais a legalidade estrita. E a questão do processo é evidentemente constitucional. A súmula constitui uma verdadeira limitação para o poder jurisdicional”, argumentou.
Justiça Global defende o cancelamento da súmula
Para a Justiça Global, a mudança na redação não garante uma mudança de comportamento da magistratura fluminense e defende que a sociedade civil acompanhe atentamente a aplicação do novo texto para que o devido processo legal não sofra interferência dos agentes de segurança.
A organização solicitou ingresso como amicus curiae no processo e defende o cancelamento da súmula por avaliar que a orientação dá margem para violações de direitos humanos, indo de encontro à Constituição brasileira e aos compromissos firmados pelo país em âmbito internacional.
No pedido, argumenta que a súmula considera a palavra do policial mais importante do que a do acusado, e isso pode ser um problema, uma vez que o agente de segurança naturalmente não vai admitir que houve erros na própria conduta, tendo assim a opinião influenciada pelo desejo de legitimar a própria atuação.
A organização destaca o efeito trágico da aplicação do enunciado, uma vez que 53,76% das condenações por tráfico de drogas baseiam-se apenas nos depoimentos dos agentes de segurança, bem como se tem que 82,13% dos casos a deflagração do processo advém de prisão em flagrante.
Os dados são da pesquisa Tráfico e sentenças judiciais – uma análise das justificativas na aplicação da Lei de Drogas no Rio de Janeiro, produzida pela DP-RJ e pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) do Ministério da Justiça.
A Justiça Global acrescenta que os graves efeitos da decisão em um país cuja atuação violenta de agentes de segurança é sistemática e o racismo é institucionalizado.
“A criminalização em massa de certos grupos sociais, especialmente pessoas negras, moradores de favelas e periferias, torna ainda mais questionável a validade de depoimentos policiais como única prova para uma condenação. Essa prática distorce o processo penal, reforça a seletividade do sistema de justiça e contribui para o encarceramento em massa de pessoas negras e pobres”, observa o advogado da Justiça Global, Rudá Oliveira.
Presunção de inocência
Admitido como amicus curiae no processo, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) acrescentou ainda no memorial apresentado ao tribunal que a garantia constitucional da presunção de inocência “pode ter a sua efetividade inibida por interpretações da Súmula n.º 70 que acabam por supervalorizar o depoimento policial, ainda que de modo residual”.
Além disso, sustenta-se que “uma cultura de respeito às garantias fundamentais e que crie incentivos para que a palavra policial seja corroborada por elementos externos, quando possível, tendem a fazer melhorar a qualidade das investigações, bem como a coibir quadros de abuso policial”.
Procedimento n.º 0032357-91.2024.8.19.0000.
Foto de capa: Bruno Dantas/TJ-RJ.