A nova edição do periódico trimestral da Justiça Global sintetiza reflexões de familiares de vítimas, especialistas e defensores de direitos humanos sobre reparação em casos de violência policial.
Dos valores caros à democracia, “liberdade, memória, verdade e justiça”, o fazer justiça – mais do que responsabilizar os envolvidos – envolve reparar as vítimas e promover mecanismos para que as violações de direitos humanos nunca mais ocorram.
Com raízes no processo colonial e no racismo, os casos de violência policial, que por vezes envolvem execuções sumárias e desaparecimentos forçados, deixam sequelas, ausências e dores na alma da família e de toda uma comunidade, acionadas sempre que mais um caso ocorre.
Nem a Abolição da Escravatura, em 1888, nem a redemocratização a partir de 1985, nem decisões judiciais nacionais, como o caso da ADPF 635 ou internacionais – como a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o Caso Favela Nova Brasília Vs. Brasil – no qual a Justiça Global atuou como amicus curie –, conseguiram até agora arrefecer a violência estatal, que atinge sobretudo a população negra e os povos indígenas, em especial em territórios empobrecidos.
O primeiro caso, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.635 – a ADPF das Favelas, que o governo estadual do Rio de Janeiro adote uma série de medidas para reduzir a letalidade policial. O segundo trata da condenação pela Corte IDH, de 2017, do Estado brasileiro sobre uma série de violações, incluindo tortura e violência sexual, em operações policiais realizadas entre 1994 e 1995 no Complexo do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro–RJ. A sentença determina medidas de não-repetição, que incluem, entre outras, a elaboração de um plano para a redução de letalidade policial; a compilação e publicação de dados sobre violência policial; a investigação independente e imparcial de crimes cometidos pela Polícia; e a participação das vítimas e familiares na investigação e em processos judiciais.
Quais são as possibilidades de reparação e não-repetição nesse contexto a partir de uma perspectiva que considere gênero, raça e classe? E quais elementos do direito internacional contribuem para o avanço na pauta a partir da perspectiva das sujeitas e dos sujeitos que transformam o luto em luta?
Essas foram uma das perguntas que nortearam as Oficinas Imaginativas: uma série de encontros realizados em 2023 no Rio de Janeiro–RJ pela Justiça Global, com mães, familiares e vítimas da violência policial, além de representantes do movimento negro e especialistas no tema. As trocas estão condensadas no segundo volume do periódico trimestral da Justiça Global, Abrindo Diálogos, com o tema “Contra a violência do Estado, para uma justiça global: reparação e não-repetição”.
Ao todo, foram quatro encontros realizados na sede da Justiça Global, no Centro da cidade do Rio de Janeiro, entre os meses de julho e agosto de 2023. As oficinas contaram com a participação de mães e familiares membras de movimentos sociais ou articuladas pontualmente com esses movimentos por conta da violência sofrida no contexto de implementação da necropolítica de segurança pública no estado do Rio de Janeiro. Foram convidadas também mulheres articuladas em Movimentos Negros e Movimentos de Mulheres, a fim de promover intercâmbio entre as participantes. Em cada oficina participaram entre 26 e 28 mulheres adultas, a maioria, cerca de 95%, são autodeclaradas negras, em diversas faixas etárias e moradoras de favelas da cidade do Rio de Janeiro, de São Gonçalo e de municípios da Baixada Fluminense, algumas acompanhadas por crianças, filhas/os e/ou netas/os. Também foram convidados homens atuantes no movimento, dos quais um teve participação ativa.
Saiba mais: Ousar imaginar justiça e reparação diante da violência do Estado
A publicação agrega reflexões sobre a mobilização levantadas nas ruas e nas vidas das pessoas, além de dezenas de recomendações às políticas públicas, que envolvem desde destinação de recursos para acompanhamento psíquico para vítimas ou familiares das vítimas e defensores dos direitos humanos no território; acesso facilitado para vítimas e familiares aos aparelhos de assistência jurídica; a outras iniciativas como a ampliação das políticas de memória com a criação de memorais pelo Estado, com criação e destinação de recursos e conselhos participativos abertos à comunidade, para monitoramento e fiscalização da implementação dos recursos.
Confira quem participou:
Adriana Odara Martins (Movimento Negro Unificado do Estado do RJ, Instituto de Pesquisas das Culturas Negras, Instituto Alagbáras, Fórum de Mulheres Negras do RJ, Marcha Estadual de Mulheres Negras do RJ, Frente Nacional Antirracista, Baía Viva, Movimento Pró-Rebio Tinguá, Comissão de Combate a Intolerância Religiosa); Ana Paula Gomes de Oliveira (mãe de Johnatha de Oliveira Lima, Pedagoga, Mães de Manguinhos, Fórum Social de Manguinhos); Bruna da Silva (mãe de Marcus Vinícius, Mães da Maré, articuladora e mobilizadora de território da Redes da Maré); Cleonice Florencio (Coletivo de Mulheres Do Morro do Sossego – Duque de Caxias–RJ); Deize S. de Carvalho (mãe de Andreu Luís Silva de Carvalho, Núcleo de Mães Vítimas de Violência do Estado); Djanicy C. Ribeiro (mãe de Marcos Paulo Conceição Ribeiro Oliveira, vítima de desaparecimento forçado, Mães da Maré e Mulheres em Movimento da Maré, Redes da Maré); Fátima Alerrandra Pinho (irmã de Paulo Roberto Pinho de Menezes, Mães de Manguinhos, Fórum Social de Manguinhos); Fátima dos Santos Pinho (mãe de Paulo Roberto Pinho de Menezes, Mães de Manguinhos, Fórum Social de Manguinhos); Flávia Concecio (Movimento Moleque, Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo de Estado pesquisadora, fundadora e articuladora do Movimento de Mulheres Cuidando e Movimentando Territórios); Irone Maria Santiago (mãe do sobrevivente de violência policial Vítor Santiago, Mães da Maré, Mulheres em Movimento da Maré, mobilizadora, articuladora e pesquisadora da Redes da Maré); Lorraine Roberta Carvalho L.F. da Silva (irmã de Andreu Luís Silva de Carvalho, Núcleo de Mães Vítimas de Violência do Estado); Maria Dalva da Costa Correia da Silva (mãe de Thiago Correia da Silva, Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, Frente Estadual pelo Desencarceramento/RJ, Movimento Posso me Identificar?); Maria Angélica Bernardo da Silva Dias (mãe de Matheus Lucas Bernardo da Silva, Rede de Mães e Familiares Vítimas de Violência da Baixada Fluminense, Articuladora do Projeto Guerreiros do Amor); Marilza Barbosa Floriano (Frente Estadual pelo Desencarceramento–RJ, Rede de Mães e Familiares Vítimas de Violência da Baixada Fluminense, Coletivo de Mulheres Do Morro do Sossego – Duque de Caxias–RJ, Rede Vozes Negras pelo Clima, Articuladora de Território); Monalisa da Silva Teixeira (Mandato Antirracista Vereadora Monica Cunha e Movimento Moleque); Patrícia de Oliveira Gomes (tia de Johnatha de Oliveira Lima, Favelada Arquiteta e Mães de Manguinhos, Fórum Social de Manguinhos); Patricia de Oliveira Silva (Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, Movimento Candelária Nunca Mais, Frente Estadual pelo Desencarceramento do RJ e Agenda Nacional pelo Desencarceramento, Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo de Estado); Rafaella Villar Bastos (irmã de Guilherme Villar Bastos, Mães da Maré); Regiane Pires (mãe de Brendo Reynaldo Brasil da Silva, Irmã de Evandro da Silva Santos, sogra de Leandro Garcia, Movimento Negro Unificado de Nova Iguaçu–RJ e Articulação de Mulheres Brasileiras–RJ, Rede de Mães e Familiares Vítimas de Violência da Baixada Fluminense, Coletivo Guerreiras da Palhada); Renata Aguiar dos Santos (mãe de Antoni Wladimir Aguiar dos Santos e Roberto Michel Aguiar dos Santos, Rede de Mães e Familiares Vítimas de Violência da Baixada Fluminense); Sandra Maria Gomes dos Santos (mãe de Matheus Gomes, Mães do Jacarezinho); Sandra Maria Rosa Neves (Coletivo de Mulheres Do Morro do Sossego – Duque de Caxias–RJ); Selma Correa do Nascimento (mãe de Rodrigo Nascimento de Moraes – vítima de desaparecimento forçado, Mães da Maré e Mulheres em Movimento da Maré, Redes da Maré); Tamires dos Santos Rodrigues de Farias (irmã de Antoni Wladimir Aguiar dos Santos e Roberto Michel Aguiar dos Santos, Rede de Mães e Familiares Vítimas de Violência da Baixada Fluminense); Vanessa Bernardo Torres (mãe de Lucas Torres dos Santos, Rede de Mães e Familiares Vítimas de Violência da Baixada Fluminense); Vânia da Silva Pereira (mãe de Marvin Natan Pereira Viana da Silva, Mulheres em Movimento, Redes da Maré); Veraluce Sousa da Silva (Coletivo de Mulheres Do Morro do Sossego – Duque de Caxias–RJ); Vanderley Cunha (Deley de Acari), Coletivo de Animação Cultural e Desportiva Sagrada Esperança, Rede de Atenção Psíquica e Reparação Psíquica do Complexo de Acari; Kimberly Bheatriz Souza (estudante de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e estagiária da Justiça Global); e Maria Fernanda Sampaio, estudante do curso técnico em meio ambiente do Instituto Federal do Rio de Janeiro e estagiária da Justiça Global. Coordenação: Monique Cruz, coordenadora do programa de Violência Institucional e Segurança Pública da Justiça Global.
Sobre o periódico Abrindo Diálogos
O periódico trimestral da Justiça Global traz análises mais aprofundadas sobre os direitos humanos e os temas de atuação da organização. Lançado em 2024, no ano em que a Justiça Global completa 25 anos de história, a publicação nasceu diante da necessidade de compartilharmos os processos e amadurecimentos obtidos ao longo de atuação da organização, mas também, como o nome sugere, de colocá-los em perspectiva para ser possível confabular com pessoas e organizações interessadas em proteger e defender os direitos humanos.