Desde a sua fundação, em 1999, a Justiça Global prioriza em seu trabalho o registro e o encaminhamento de denúncias de violações de direitos humanos, com foco especial nas violações perpetradas por agentes de Estado. Em todas as regiões do país nas quais atuamos, a violência institucional marca o cotidiano das pessoas que residem em favelas e periferias – violência institucional essa que tem como um dos braços mais fortes de sua expressão a Polícia Militar.
Durante o processo de Revisão Periódica Universal realizado pela ONU no final de 2012, foi feita ao Brasil a recomendação para extinguir a Polícia Militar e o governo negou, sob o argumento de que a abolição recomendada fere a Constituição vigente. Compartilhamos do posicionamento daqueles que entendem que um debate qualificado sobre desmilitarização está para além da proposta da desvinculação da Polícia Militar às Forças Armadas. Afinal, urge discutirmos os atravessamentos da retórica da guerra às drogas, que vêm sendo a justificativa do combate a um suposto inimigo desde as formulações das políticas de segurança pública no poder executivo e as decisões tomadas pelos profissionais do poder judiciário até a reprodução dessa lógica bélica pelos agentes de segurança nas favelas e periferias.
E por entendermos a relevância da demarcação de posicionamentos para o avanço dos debates políticos, temos pautado a militarização enquanto herança da ditadura empresarial-civil-militar que marca a história do nosso país. Entendemos os efeitos da militarização não só nas atualizações de dispositivos de controle, mas também na proliferação de subjetividades amedrontadas, policialescas e punitivistas. Nos posicionamos, portanto, pautando a desmilitarização de territórios, corpos e subjetividades.
Em nosso trabalho cotidiano, priorizamos a interlocução com as pessoas diretamente atingidas pela violência institucional militarizada: mulheres negras que tiveram filhas e filhos executados sumariamente por policiais militares; jovens negras que foram violentadas e agredidas física e verbalmente por policiais; jovens negros que foram espancados em abordagens de rotina; moradoras e moradores que foram detidos arbitrariamente; coletivos de mídia comunitária que tiveram suas rádios fechadas ou que tiveram que parar de distribuir seus jornais frente a ameaças e perseguições destes mesmos agentes de estado; movimentos sociais organizados por moradores de favelas que resistem cotidianamente às forças de estado que tentam calar suas vozes, eliminar suas bandeiras e silenciar suas denúncias.
Todas essas violações, que marcam ações da Polícia Militar nas favelas e periferias urbanas nas duas últimas décadas, foram rotinizadas em algumas favelas localizadas no Rio de Janeiro a partir da instalação das Unidades de Polícia Pacificadora. As UPPs se conformam enquanto ocupações militarizadas de territórios, que atualizam tecnologias governamentais de controle e repressão das populações que ali residem. Não aceitamos que violações de direitos humanos praticadas por agentes da Polícia Militar – independente da unidade policial na qual atuem – continuem sendo tratadas como exceção. Nenhuma morte de morador de favela provocada por um agente de estado pode ser considerada caso isolado.
Enquanto uma organização que atua na proteção e promoção dos direitos humanos, temos nos posicionado publicamente frente a qualquer tentativa de deslegitimar as reivindicações políticas de moradores e coletivos de favelas e de invisibilizar seu sofrimento. É legítimo protestar contra a violência perpetrada pelos agentes da Polícia Militar e contra o que tal instituição, seus agentes e gestores representam. Foi essa pauta que mobilizou os coletivos que protestaram durante o debate que aconteceria no dia 14 de outubro na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
As manifestações de moradores e coletivos de favelas refletem justamente repúdio a um cenário político marcado por uma combinação entre a reedição de discursos e ações moralizantes e civilizatórias com intervenções governamentais que impõem disciplina e controle de populações (e territórios) através do uso excessivo da força e do investimento na militarização. Refletem repúdio a “política de pacificação” que intensifica a segregação, submetendo os debates sobre políticas públicas ao debate da segurança e afirmando a favela como um território a ser neutralizado.
Para pôr fim a este quadro de violações, a Justiça Global defende o fim da militarização dos territórios da cidade, como é o caso das UPPs e das ocupações militares pelas Forças Armadas e Força Nacional. Queremos que o Estado esteja presente nas favelas a partir da garantia ampla, efetiva e eficaz dos direitos de seus moradorxs e não com a militarização do cotidiano e da vida destes locais.
a) Assim, reafirmamos a importância das propostas contidas no Caderno de Resoluções do Encontro Popular sobre Segurança Pública e Direitos Humanos, realizado em julho de 2013, no Rio de Janeiro, entre as quais destacamos: Fim das polícias militares e desmilitarização das polícias. Pelo desmonte da ideologia militar que vigora em todas as instituições de segurança pública.
b) Fim de toda forma de militarização dos territórios a partir das UPPS, Força Nacional, operações militares, entre outros.
c) Fim do caveirão e da utilização de todo aparato de guerra pelas forças policiais, inclusive pela polícia civil e forças armadas.