Para a organização, o termo firmado nesta quinta-feira (20) é temerário e pode fragilizar o processo em curso de deliberação da Corte Interamericana após julgamento realizado em abril de 2023. A sentença é aguardada pelas peticionárias.
Diferente do que tem sido amplamente divulgado, o acordo entre comunidades quilombolas de Alcântara–MA e o Estado brasileiro para a titulação do território, foi produzido a partir de diálogos entre seus representantes após o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) anunciado na véspera da audiência do caso na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em abril em 2023, e pode representar o esvaziamento de uma sentença condenatória internacional, é que afirma a Justiça Global, copeticionária do caso no tribunal, em nota de posicionamento.
Nesta quinta-feira (19), o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, esteve na comunidade de Mamuma, em Alcântara, para anunciar o acordo, com portarias de reconhecimento a 21 comunidades quilombolas além de 11 decretos de interesse social. O anúncio sinaliza para o fortalecimento do Programa Espacial Brasileiro.
Os documentos, no entanto, ainda não resolvem o conflito histórico em Alcântara, observa a nota, e não enfrentam diretamente a questão central: a titulação. Segundo o texto, o termo firmado estabelece prazo de um ano para iniciar a regularização fundiária do território. No documento do governo, o Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação e o Comando da Aeronáutica renunciam à reivindicação de expandir o CLA – temida pelas comunidades ao longo dos últimos anos.
Porém, “oferece uma solução precária, pois a renúncia não dependia da conciliação e é ato unilateral”. Vale destacar que o destravamento do processo de titulação já haviam sido determinados por decisões judiciais de cortes nacionais e internacionais. Para a Justiça Global, a assinatura do acordo é temerária, pois enfraquece uma possível condenação internacional do Estado pela Corte – o que poderia significar avanços em relação à garantia de direitos a outros territórios quilombolas – e “pode fragilizar o processo em curso de deliberação da Corte, colocando a obrigação internacional do Estado brasileiro de realizar a titulação em compasso de espera”.
“Após mais de quarenta anos de conflito, o governo brasileiro teve inúmeras oportunidades de titular e garantir os direitos tradicionais das Comunidades Quilombolas de Alcântara, mas não o fez. Que o tempo e a violência que atravessaram historicamente as Comunidades Quilombolas de Alcântara sejam reparados integralmente e que não se repitam com outras comunidades quilombolas e tradicionais no Brasil”, aponta a nota.
GTI não tinha condições justas e equilibradas para ao debate
A Justiça Global lembra que, em janeiro, os representantes das comunidades decidiram se retirar do GTI, instituído pelo Decreto n. 11.502, após uma série de questionamentos à condução do diálogo pelo governo federal. O grupo era composto por apenas quatro representantes da comunidade quilombola e 13 do próprio governo, “o que revelou um drástico desequilíbrio de poder na representatividade”, diz a nota. “Ressalte-se que nenhuma representação quilombola de Alcântara ou de suas instituições de assessoria técnica e jurídica, incluindo as peticionárias perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, foi consultada sobre a criação do GTI”.
Para a organização, durante os seis meses de atividade do GTI, ficou evidente que o propósito do espaço, antes de titular o território, seria de buscar formas de conciliação entre os interesses dos militares da Força Aérea Brasileira e os direitos ancestrais ao território tradicional, aos recursos natuais e à propriedade coletiva das comunidades quilombolas.
“O governo brasileiro não ofereceu condições justas e equilibradas para o debate e não disponibilizou estudos técnicos e científicos para subsidiar a tomada de decisão, bem como não foi apresentado o planejamento das ações pretendidas. O GTI não buscou solucionar a dívida histórica do Estado brasileiro de titular as terras quilombolas. Ao invés disso, o Governo Federal buscou “alternativas para a titulação territorial” com o intuito de reiniciar processos de conciliação incumpridos ao longo de mais de 40 anos. Diante deste contexto, as entidades representativas das Comunidades Quilombolas de Alcântara decidiram por se retirar do Grupo de Trabalho Interministerial”.
Sobre o caso
O Caso Comunidades Quilombolas de Alcântara vs. Brasil foi denunciado ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos em 2001 e admitida em 2006. A queixa trata da violação da propriedade coletiva de 152 comunidades e à instalação de uma base aeroespacial sem a devida consulta e consentimento prévio, a expropriação das suas terras e territórios, e a falta de recursos judiciais para remediar tal situação.
Na década de 1980, mais de 300 famílias de 32 comunidades foram removidas de seus territórios para a construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) e realocadas em ‘agrovilas’ construídas pelo governo militar, sem respeito à organização econômica, social e cultural das comunidades atingidas, gerando uma cascata de violações ao território quilombola, incluindo insegurança alimentar e hídrica, pobreza e desagregação social.
No último Censo do IBGE, de 2022, que trouxe pela primeira vez dados sobre a população quilombola, Alcântara foi considerado o município brasileiro com a maior proporção de quilombolas: 84% dos 18 mil moradores. São cerca de 3.350 famílias, distribuídas em 152 comunidades quilombolas, vivendo sobretudo de agricultura de pequena escala e da pesca artesanal. A ocupação remonta ao século XVIII.
O município surgiu com uma economia de produção de cana-de-açúcar e de algodão com base no trabalho escravo de indígenas e negros. Com a queda do açúcar e a Abolição, no século XVIII, muitos escravizados e alforriados se agruparam em quilombos num modelo de campesinato de agricultura de subsistência, caracterizado pelo uso comum das terras, com produção de farinha, arroz, pescaria e artesanato.
Tramitação na Corte Interamericana de Direitos Humanos
O caso foi mobilizado por integrantes das comunidades Samucangaua, Iririzal, Ladeira, Só Assim, Santa Maria, Canelatiua, Itapera e Mamuninha. A Justiça Global, o Movimento dos Atingidos para Base de Alcântara (MABE), Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão (FETAEMA), Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR), a Defensoria Pública da União (DPU) são copeticionários do caso.
“O caso “Comunidades Quilombolas de Alcântara vs Brasil” é um caso emblemático e histórico, não somente pela confrontação de atos realizados pelas Forças Armadas em um Tribunal Internacional, mas também porque é o primeiro caso em análise pela Corte Interamericana a tratar de direitos de comunidades quilombolas brasileiras relacionados à propriedade territorial ancestral e coletiva”, observa a organização.
Foram realizadas duas audiências, em 2008 e 2019, no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, mas diante da falta de cumprimento das recomendações pelo Estado brasileiro – inclusive em relação à falta de consulta prévia em relação a acordo firmado com os Estados Unidos, o caso foi levado ao tribunal.
Durante a audiência de abril de 2023, o governo federal chegou a reconhecer as violações ao direito de propriedade das comunidades pela omissão em titular o território, e ao direito à proteção judicial, em decorrência da demora processual e da ineficiência das instâncias judiciais e administrativas, emitindo uma declaração oficial com pedido de desculpas em relação a essas violações. O pronunciamento foi questionado pelas comunidades e organizações peticionárias.
“Às representantes, causa frustração que o reconhecimento do direito à titulação venha completamente esvaziado de conteúdo efetivo. Na melhor das hipóteses, apontou-se a predisposição de alcançar soluções mediadas – um caminho já trilhado nestas quatro décadas de luta”, manifestaram as peticionárias a época.
Leia: Pedido de desculpas do Estado para quilombolas de Alcântara é incompleto e suscita dúvidas
A Justiça Global observa que, apesar de reconhecer parte das violações e em uma tentativa de evitar condenação no mérito, o Estado brasileiro alegou que a Corte Interamericana não teria competência para julgar os deslocamentos forçados, visto que na época da instalação do CLA o país ainda não fazia parte do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, e a Convenção n.169 da OIT ainda não havia sido estabelecida.
“A postura do Brasil na audiência foi considerada incoerente por alguns grupos, que observaram a dificuldade do governo Lula em conciliar as posições contraditórias entre os setores progressistas e conservadores que integram a atual gestão”, escreve na nota.
OIT recomenda que território seja titulado
Em julho, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) recomendou que o Brasil titule os territórios quilombolas do município de Alcântara e siga em relação ao caso o que está previsto na Convenção n.169, que prevê a consulta prévia, livre e informada sobre projetos e medidas que afetem povos indígenas e comunidades tradicionais. Foi a primeira vez na história que a OIT emitiu recomendações sobre comunidades quilombolas no Brasil. A medida responde a uma reclamação de 2019.