ONU e CIDH condenam a violência contra os povos indígenas no Brasil e pedem que Estado proteja seus direitos territoriais

Comunicado conjunto destacou os ataques recentes nos estados da Bahia, Paraná e Mato Grosso do Sul. A Justiça Global denunciou os episódios recorrentes de violência contra o Grande Povo Guarani (MS e PR) no começo do mês e copeticionou medidas cautelares aos povos Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe (BA).

Nesta quinta-feira (17/10), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos na América do Sul, a ONU Direitos Humanos, divulgaram comunicado conjunto em que pedem que Estado brasileiro tome as medidas necessárias para cessar a violência e garantir a demarcação de terras aos povos indígenas, em meio aos inúmeros ataques recentes especialmente nos estados da Bahia, do Mato Grosso do Sul e do Paraná.

O Brasil foi instado “a tomar medidas imediatas para garantir a demarcação e titulação das terras indígenas, assegurando seu direito à propriedade coletiva sem invocar a tese do Marco Temporal”.

Os organismos internacionais expressaram “profunda preocupação com o aumento da violência contra os povos indígenas no Brasil, em meio aos seus esforços para defender os direitos territoriais”. Os povos indígenas Pataxó, Pataxó Hã-Hã-Hãe, Guarani-Kaiowá e Avá Guarani têm enfrentado episódios contínuos de violência relacionados principalmente à disputa por terras, interesses econômicos e racismo.

Escalada de ataques em territórios indígenas

Na última quinta-feira (17/10), um comboio miliciano avançou sobre a retomada tekoha Yvyju Avary, do povo Avá Guarani, que vivem na região fronteiriça entre o Brasil e o Paraguai, em Guaíra, no oeste do Paraná. Homens armados na caçamba de um caminhão adaptado e em quatro tratores atiraram contra os indígenas da aldeia e pulverizaram agrotóxicos sobre a comunidade.

A Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), denunciou que um indígena foi atropelado pelo comboio e o suposto proprietário da área sobreposta à Terra Indígena agrediu a pauladas outro rapaz, que acabou ferido na lateral direita da cabeça. Um cachorro da comunidade foi morto a sangue-frio pelo bando criminoso.

No final da tarde do último domingo (13), a comunidade da aldeia Y’Hovy, no município de Guaíra, no oeste do Paraná, enfrentou disparos de arma de fogo, efetuados sobre um campo onde jovens e crianças jogavam futebol, na direção da casa de uma das lideranças da comunidade, mas não deixaram ninguém ferido. No início da noite, mais disparos e fogos de artifício também foram ouvidos e deixaram os indígenas em alerta.

Os Avá Guarani enfrentam disputas territoriais de décadadas. Eles foram deslocados de seus territórios ancestrais com a construção da Usina de Itaipu e vêm enfrentando ameaças, perseguições e violência física de fazendeiros e outros grupos que se opõem à demarcação de terras indígenas.

Os Pataxó e os Pataxó Hã-Hã-Hãe, que vivem principalmente no sul da Bahia, têm sido pressionados por fazendeiros e grileiros e enfrentam ameaças ao território, principalmente pela pressão do agronegócio, do setor hoteleiro e da especulação imobiliária. Diante da demora na garantia de seus direitos pelo Estado, eles deram início a um processo de autodemarcação. Desde então, têm sofrido com uma violência intensa, contínua e desproporcional.

Em janeiro, o assassinato da majé Fátima Muniz de Andrade – a Nega Pataxó – trouxe à tona a organização paramilitar, formada por fazendeiros, milicianos e até policiais militares que prestam serviços de segurança privada. Um mês antes, Lucas Santos de Oliveira também foi vítima do processo genocida.

No Mato Grosso do Sul, dois indígenas da Terra Indígena (TI) Nhanderu Marangatu, em Antônio João–MS, foram mortos durante retomada na fazenda Barra, sobreposta à área indígena. O corpo de Fred Souza Garcete, de 15 anos, foi encontrado sem vida em uma estrada, com perfurações na cabeça, em 23 de setembro, dois dias após o enterro de Neri Ramos da Silva, assassinado em 18 de outubro com um tiro de arma de fogo durante operação da Polícia Militar (PM).

Há anos, os Guarani-Kaiowá têm ficado no topo do ranking de violência contra os povos indígenas realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Os episódios de violência incluem invasões, destruição de aldeias e assassinatos de lideranças indígenas.

Marco temporal agrava onda violência

O comunicado da CIDH e da ONU observa que a “onda de violência é agravada pelo lento progresso na demarcação das terras indígenas e pela contínua insegurança jurídica”, destacando que a situação piorou com a aprovação Lei n.º 14.701 pela Câmara dos Deputados, em outubro de 2023, que adota a tese do “Marco Temporal”, mesmo com veto do Poder Executivo, derrubado no Congresso e decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou essa tese inconstitucional. Uma decisão final do STF sobre a constitucionalidade da lei continua pendente.

O texto define as “terras indígenas tradicionalmente ocupadas” apenas como aquelas “habitadas e utilizadas” pelos indígenas para suas atividades produtivas na data da promulgação da Constituição, limitando e restringindo a demarcação das terras indígenas no Brasil.

Leia a nota da Justiça Global sobre a tese do Marco Temporal. 

Os organismos reiteram que, “de acordo com os padrões interamericanos e universais de direitos humanos, os povos indígenas têm direito a uma proteção especial de sua integridade física, psicológica e cultural, permitindo-lhes viver livres de violência, discriminação e exploração. Esse direito abrange a salvaguarda de sua cultura, território e o direito à autodeterminação, essenciais para sua identidade e seu bem-estar”.

E lembram da interdependência mútua entre os povos indígenas com seus territórios e do dever do Estado brasileiro de proteger os direitos à propriedade coletiva, conforme afirmado na Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

A CIDH e a ONU ainda determinaram que o Brasil adote medidas imediatas e eficazes para prevenir, investigar e sancionar ações que ameacem a vida e a integridade dos povos indígenas, sejam elas perpetradas por terceiros ou por agentes do Estado. Além disso, deve implementar medidas de proteção para as comunidades indígenas que enfrentam ameaças iminentes.

Denúncia e evento paralelo no Conselho de Direitos Humanos da ONU

A Justiça Global e o Conselho Indigenista Missionário levaram à 57⁠ª reunião ordinária do Conselho de Direitos Humanos uma denúncia sobre as ações violentas contra indígenas nos últimos meses nos territórios retomados pelos povos Avá-Guarani e Guarani-Kaiowá. Os dois territórios estão em áreas em processo de identificação e delimitação.

Na apresentação, as organizações destacam que os grupos têm sofrido constantes ataques articulados por ruralistas e que grupos de extrema-direita iniciaram campanhas de ódio nas cidades, mobilizados pelas eleições municipais, em outubro.

“Indígenas feridos a tiros, incêndios criminosos, sequestros, agressões físicas, racismo. São cerca de 20 indígenas feridos em ao menos dez ataques nos dois estados. Mulheres ameaçadas de estupro, crianças e adolescentes não podem ir à escola e doentes estão desassistidos. Nos locais das retomadas, o acesso à alimentação e água potável depende de doações”, afirmam.

Saiba mais.

As organizações – ao lado da Comissão Arns, Conectas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Aty Guasu (Grande Assembleia Guarani Kaiowá), a Fian Brasil, a Fian Internacional,  o Conselho de Missão Entre Povos Indígenas (Comin), a Vivat, a Minority Rights Group e o WBO – Brazil Office Washington – realizaram um evento paralelo onde foi evidenciado como Estado brasileiro leva violência às terras indígenas. O evento teve participação do relator especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas, José Francisco Cali Tzay.

Medidas cautelares em favor dos Pataxós estão vigentes na CIDH desde abril do ano passado

Diante da série de episódios de violência contra os Pataxó, no Sul da Bahia, a Comissão Interamericana decidiu, em abril do ano passado, ampliar as medidas cauteladores adotadas quatro meses antes. O pedido foi apresentado pelaArticulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), a Justiça Global, o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH), a Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos (FADDH), o Instituto Hori Educação e Cultura e a Terra de Direitos.

Denúncia à CIDH sobre a situação dos Guarani-Kaiwá foi apresetada há 12 anos

Em 2012, a Justiça Global, a FIAN Brasil, a FIAN Internacional e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) apresentaram uma denúncia à Comissão Interamericana em razão da não finalização do processo demarcatório das terras Guarani-Kaiowá das comunidades Apyka’i, Guaiviry, Kurusu Ambá, Ñhanderu Marangatu e Ypo’i. Por consequência, diversos outros direitos vêm sendo violados, como o direito à água, à alimentação adequada, à saúde e à educação. As famílias têm sofrido violência e diversas lideranças já foram assassinadas nos conflitos.

Foto da capa: Guarani e Kaiowá manifestam-se durante visita de comitiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) à TI Guyraroka. Crédito: CIDH/Divulgação.

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