Painel promovido pela Justiça Global na 18ª edição do evento discutiu as medidas provisórias relacionadas ao Complexo Prisional do Curado (PE) e o Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho (RJ).
Durante painel da Justiça Global no 18ª Edição do Encontro Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizado em 15 de agosto em Recife–PE, a coordenadora de programa Monique Cruz destacou os avanços obtidos ao longo dos dez anos de monitoramento de medidas provisórias da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o Complexo Prisional do Curado, na capital pernambucana, mas também apontou importantes desafios a serem superados.
Mediado pela conselheira e co-fundadora da Justiça Global, Nadejda Callado, a discussão abordou os desafios na atuação do Estado brasileiro no cumprimento das obrigações internacionais nos temas de justiça criminal, execução penal e enfrentamento às violações de direitos humanos nas prisões.
“É um caso muito emblemático, embora não seja excepcional no contexto brasileiro. Desde a primeira resolução, foi possível enfrentar a superlotação (…), conseguimos a aplicação do cômputo em dobro (…), que garante a contagem em dobro de cada dia que a pessoa esteve submetida às condições de risco de morte iminente em privação de liberdade, e mobilizar e garantir que órgãos importantes do sistema de justiça se empenhassem e garantissem uma atuação minimamente correspondente às determinações judiciais”, avaliou Monique Cruz.
Determinado pela Corte, o cômputo em dobro foi aplicado somente após a intervenção do Conselho Nacional de Justiça, com a correição aplicada ao Tribunal de Justiça de Pernambuco, destacou ainda a pesquisadora. Em setembro de 2021, as três unidades somaram mais de oito mil pessoas privadas de liberdade. Atualmente, são cerca de 1.300 pessoas.
A última resolução da Corte Interamericana é de novembro de 2018. Ao todo, foram emitidas dez. A Justiça Global acompanha o caso ao lado do Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (Sempri) desde 2011.
Falta de transparência, de devida investigação e permanência dos “chaveiros”
Entre os desafios, a assistente social e pesquisadora mencionou a dificuldade de obter informações transparentes sobre a implementação das medidas. “Não temos recebido informações de maneira sistematizada sobre transferências, aplicação do cômputo em dobro, ou investigação e responsabilização pela situação das unidades”.
Desde novembro de 2018 até o início de 2022, a Justiça Global documentou cerca de 250 mortes, que incluem óbitos por doenças agravadas ou obtidos no contexto de prisão, além das mortes violentas. Desde 2007, são mais de mil casos sem esclarecimento de morte, tortura, agressões e ameaças dentro do complexo prisional.
Outra grave questão apontada foi a continuidade das funções de chaveiros dentro das unidades, quando uma pessoa privada de liberdade é escolhida pela gestão para agir como um agente penitenciário, supervisionando cada pavilhão e inclusive obtendo as chaves das celas. “[A existência dessa] figura explicita que o Estado não proporciona condições de trabalho adequadas aos profissionais”, observa Monique Cruz.
Ela completa que, na avaliação da Justiça Global, o Estado continua investindo na estratégia de “maquiar as unidades às quais se destinam as medidas, aprofundando outros problemas em outras unidades prisionais”, diz, se referindo às transferências sucessivas de internos para lugares que não estão supervisionados pela Corte Interamericana.
Hoje, diretor-executivo da organização estadunidense University Network for Human Rights, James Cavallaro, e presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos entre 2016 e 2017 contribuiu no debate ressaltando a importância de que as resoluções incorporem uma visão sistêmica sobre os problemas, a partir dos casos concretos, mudando políticas públicas.
Ele participou do pedido de medidas provisórias em relação a outro caso, no presídio de Urso Branco, em Rondônia, em 2002, logo após uma rebelião que terminou na morte de 27 pessoas e vários feridos.
“Quando os organismos internacionais começam a mexer com os casos e fazer determinações, as autoridades nacionais perdem o controle. E o grande problema dos centros penitenciários em qualquer lugar no mundo, o tema sempre é quem controla esse espaço, quais as regras que não estão na lei. A atuação do Sistema Interamericano pode oferecer a possibilidade de quebrar as relações, muitas vezes perversas, de distribuição de controle e poder”, apontou.
“A prisão tem cor, classe social e de gênero”
“A prisão é resultado de tudo. A leitura da prisão tem cor, tem classe social, questão de gênero… E enquanto o Estado não cumpre sua função, a manutenção dos direitos daquelas pessoas fica a cargo de seus familiares. Não se garante nada, nem ressocialização, que está na lei”, avaliou a assistente social Wilma Melo.
“O racismo – que determina e dá fundamento à seletividade racial que encarcera desproporcionalmente pessoas negras no Brasil – não pode ser compreendido somente pela quantidade numérica de pessoas privadas de liberdade. É preciso compreender que as relações raciais determinam as condições de vida das pessoas, assim como a relação das instituições policiais e do sistema de justiça com pessoas não-brancas. A exemplo, destaco a condição em que pessoas indígenas são encarceradas tendo muito mais que seu corpo violados nas prisões, mas seu idioma, e outros elementos culturais que determinam a própria condição de vida em relação à sua subsistência em muitos casos”, acrescentou Monique Cruz.
Wilma completou que, apesar de melhorias obtidas no atendimento à saúde – “hoje não são os próprios presos que fazem as cirurgias” -, ainda há problemas como o acesso a equipamentos de saúde bucal. Ela defende que o sistema de saúde se responsabilize pelo espaço de saúde dentro das unidades.
Ao ser convidada a se tornar ouvidora do Sempri durante o evento, Aline Spinelli, casada com uma mulher trans em privação de liberdade, contribuiu no debate trazendo a situações das prisões para mulheres. “Existem muitas meninas vivendo em situações deploráveis. O sistema não tem condições de saúde adequadas. Em um pavilhão que deveria ter 20 pessoas, hoje tem 80. Eu vivo aquela realidade, eu tô lá. Não tem onde nem tomar um banho direito”, contou.
Defensores/as de direitos humanos da pauta de segurança pública em risco
Durante o painel, a representante do Sempri, Wilma Melo, abordou as fragilidades do Estado na proteção de defensoras de direitos humanos que atuam no caso, sem a devida investigação das ameaças. Ela hoje é atendida pelo Programa Estadual de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PEPDDH-PE).
“Esse é o preço de quem se atreve a defender direitos humanos nesse país. De quem respeita e de quem sabe o que são direitos humanos”, disse Wilma Melo. Ela defendeu que o conhecimento sobre os direitos humanos seja ampliado e “deixe de ser coisa só de advogado” e provocou os ouvintes a também se reconhecerem como defensores de direitos humanos.
Favelização dos presídios
“Assim são os presídios brasileiros: um grande quarto de despejo”, declarou cofundadora do Instituto Geledés Deise Benedito, ao apresentar sua pesquisa para o mestrado em Direito e Criminologia (Universidade de Brasília, 2019), em que abordou a favelização do Complexo do Curado, durante o painel.
“A ausência do Estado e a superlotação prisional dá lugar à construção de celas pelos próprios detentos, na forma de barracos e cubículos que são ali construídos para serem comprados ou alugados. A luta por espaço no interior do presídio é uma forma de resistência e de sobrevivência, em um contexto de permanente violação de direitos humanos”, escreve.
Thais Pereira, que tem acompanhado a situação do esposo há seis anos, em privação de liberdade há seis anos, comenta que o relato de Deise não é exclusivo do Curado.”É comum as pessoas dizerem que o que acontece no Curado é porque é antigo. Engano seu! Muitas das coisas vistas aqui também acontecem no presídio de Itaquitinga. Você vê botijão fora da cela, barracos. O ovo cozido é verde, roxo, só não branco. O macarrão é dividido com microorganismos.
A enfermeira reiterou a fala de Wilma sobre manutenção da pessoa na prisão ser do familiar. “Se eu não levar a medicação para hipertensão para meu marido, ele não toma. A saúde prisional não funciona. Odontologia mesmo não existe. Quem quiser, tem que pagar, dentro das unidades mesmo. E as violações de direitos humanos contra os familiares começam na entrada mesmo. Se uma mulher estiver usando absorvente, ela tem que tirar porque as agentes suspeitam que possa ter droga”, relatou, acrescentando que foi um colega de cela mesmo que em um momento aplicou injeção de benzetacil em seu marido.
Também foi nesse sentido a partipação Washigton Luiz dos Santos no evento. Egresso do sistema prisional há 5 anos, ele cumpriu nove anos de privação de liberdade e hoje está no nono período do curso de Direito. “A pena não é individual, passa para a família”, disse. Ele enalteceu a atuação da sociedade civil, sobetudo de mulheres, para prover melhorias das condições no cárcere.
Desmonte de colegiado de combate à tortura em Pernambuco
Durante o evento, Monique Cruz também cobrou a recomposição do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura de Pernambuco, o segundo a ter sido implementado no Brasil. Sem novas seleções de peritos pelo governo estadual, o órgão está paralisado desde o início de 2023.
“Ano passado, durante visita do ministro de direitos humanos, Silvio Almeida, secretários de governo assumiram o compromisso de reestabelecer o órgão em acordo com as determinações do Protocolo Facultativo para a Convenção Contra a Tortura. Mas até o momento o órgão não foi restabelecido, o que demonstra a falta de compromisso internacional do Estado brasileiro com o enfrentamento à Tortura”, declarou.
Manoela Andrade, que integra a Frente pelo Desencarceramento de Pernambuco e que mobilizou o acompanhamento da visita do Ministério dos Direitos Humanos no Curado, parte da Caravana pelos Direitos Humanos, cobrou a apresentação de um relatório ou respostas após essas ações governamentais com os encaminhamentos das questões levantadas.
A integrante do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Camila Antero, contou que o colegiado independente realizou missões em três unidades de Pernambuco recentemente, além de um hospital psiquiátrico e duas unidades do socioeducativo. “O Curado é um conjunto de políticas penais de morte, extremamente arraigadas no estado de Pernambuco, que está sendo reproduzida em outras unidades. O Presídio de Igarassu tem 1.200 vagas, mas com 5.500 pessoas. A questão dos chaveiros, por exemplo, não é exclusiva do Curado”, relatou. “A privação de liberdade é uma mina de ouro e alguém descobriu isso. Tem pessoas que estão lucrando com isso”, declarou.
Unidade no Rio de Janeiro também foi alvo de medidas provisórias
Além do caso do Curado, o debate abordou os impactos das decisões internacionais na garantia de direitos das pessoas privadas de liberdade a partir do caso de Plácido de Sá Carvalho, unidade prisional no Complexo Penitenciário de Bangu, localizado na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro–RJ. Com base na determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Superior Tribunal de Justiça também determinou, em 2021, que as pessoas privadas de liberdade tivessem a pena contada em dobro, devido à situação degradante de aprisionamento.
A denúncia foi apresentada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro. O defensor público e subcoordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário (Nuspen), Leonardo Rosa Melo da Cunha, apresentou as diversas evidências de tortura dentro da unidade. “A situação era denunciada para os órgãos brasileiros desde 2012, mas os mecanismos internos não funcionavam e ainda não funcionam”, se queixou.
Assista à gravação do evento:
18 Encontro do FBSP – Sistema Interamericano e a garantia de direitos de pessoas encarceradas
Conheça o caso: