Nos últimos dias, uma série de tristes acontecimentos começaram a ter lugar na cidade do Rio de Janeiro, em virtude de um conflito entre facções rivais. Rapidamente, muitas vozes se levantaram para criticar a decisão obtida por um conjunto de movimentos sociais e organizações da sociedade civil no STF, no sentido de restringir operações policiais em favelas do Rio de Janeiro, devido à pandemia do novo coronavírus.
A aspiração de viver em uma comunidade, bairro, cidade e país seguros não é apenas um desejo absolutamente legítimo, é também uma obrigação do Estado e um direito de toda a sua população. Este é, inclusive, um dos fundamentos da ADPF 635: as pessoas que vivem nas favelas e periferias também têm o direito de estar em suas casas e andar pelas ruas de seus bairros sem correr o risco de serem assassinadas ou constrangidas.
Os tiroteios provocados por facções não são fato novo na realidade carioca. Trata-se de má-fé induzir a opinião pública a atribuir os lamentáveis eventos ocorridos na cidade às limitações impostas pela acertadíssima decisão do STF na ADPF das Favelas à atuação da Polícia Militar, que, de certo, não está impedida de agir, mas talvez esteja, pela primeira vez em muito tempo, obrigada a cumprir algo que lhe escapa às suas práticas rotineiras —o respeito à legalidade, à Constituição e aos tratados internacionais de direitos humanos.
Na verdade, a ADPF 635 salvou vidas. Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) apontam a queda de 74% das mortes decorrentes de intervenção policial em julho deste ano, em comparação ao ano anterior. O número de homicídios dolosos caiu para o menor patamar em 30 anos, o menor de toda a série histórica do ISP.
Enquanto não forem enfrentadas questões estruturais que atravessam historicamente os projetos de (in)segurança pública no Rio de Janeiro, só restará a retórica que manipula o medo legítimo da população para operar a barbárie de Estado. Convenientemente, se esquece da questão sobre o controle das armas no Brasil. Uma política que se pretenda efetiva no combate ao crime limita e controla o movimento de armas no país, em vez de estimulá-lo.
Nesse mesmo sentido, ignora-se o papel do encarceramento em massa para o desenvolvimento e a evolução das facções. Falta ainda, por exemplo, investimentos em inteligência e na ação integrada das policias do Rio de Janeiro. Os conflito entre as facções assolam o estado muito antes de qualquer decisão do STF.
A ADPF 635 avança em algo muito caro à sociedade fluminense: o estabelecimento de parâmetros transparentes e de acordo com os direitos humanos que possam nortear a atuação das policias do estado, que estão entre as que mais mata no país. É histórica porque marca a sensibilização do Judiciário com a temática da segurança pública, o enfrentamento ao racismo institucional e os efeitos nefastos de uma política que não vê titulares de direitos, mas alvos a serem abatidos e danos colaterais as pessoas vitimadas.
Uma polícia descontrolada e que atua desrespeitando parâmetros básicos de direitos humanos, como pretendem os críticos à ADPF 635, é uma polícia que mata pobres e negros prioritariamente. Às vítimas e a todos os moradores que sofrem com os conflitos brutais vivenciados nos últimos dias, manifestamos a mais completa solidariedade. Não podemos compactuar com esse cenário.
Glaucia Marinho é coordenadora da Justiça Global, e Raphaela Lopes e Daniela Fichino são advogadas da Justiça Global
Publicado originalmente em 27/08/20 no Uol.
Foto: Agência Brasil