Relatório da Justiça Global denuncia à CIDH racismo e violência policial contra crianças e adolescentes no Brasil

A Justiça Global apresentou um documento em que aponta conjuntura de violações de direitos diante da violência policial contra crianças e adolescentes negro/as e favelado/as no país.

A Justiça Global enviou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) um informe atualizando a situação de sistemática violação dos direitos das crianças e adolescentes brasileiras, sobretudo negras e moradoras de favelas e periferias. 

O documento destaca os inúmeros direitos violados durante operações policiais, realizadas com frequência em algumas comunidades, que impõem rotina de insegurança e medo.

“Há aqui, a negação da vida comunitária, das relações familiares e, até mesmo, do entendimento da própria casa enquanto um lugar seguro. A necropolítica e o racismo institucional e sistêmico confinam as crianças e adolescentes negros a uma realidade marcada pela militarização, abusos e violências por parte do Estado brasileiro”, observa o relatório. 

Apenas no Rio de Janeiro, entre 2017 e 2024, pelo menos 600 crianças e adolescentes foram baleados, sendo 283 atingidos durante ações/operações policiais, segundo o Instituto Fogo Cruzado. 

Em diversos casos, crianças foram vítimas de “balas perdidas” e diversos adolescentes foram criminalizados antes mesmo que uma investigação fosse realizada. 

Repetição de casos

Entre esses, estão Thiago Menezes Flausino, de 13 anos, morto a tiros na Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio, no dia 7 de agosto de 2023. 

No mesmo ano, também foram vítimas, na Ilha do Governador, na Zona Norte carioca: Wendell Eduardo, de 17 anos, quando estava na garupa de uma moto, e Eloáh Passos, de 5 anos, que brincava no quarto com sua mãe. João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos; Alice da Silva Almeida, de 3 anos, também foram vitimados nesse ano, ambos no Rio de Janeiro. 

O relatório acrescenta ainda a criminalização das vítimas, revitimizando as famílias e a memória da vítima, com falsas acusações. “Thiago sonhava em se tornar jogador de futebol, esporte que já praticava em escolinhas da região, ainda estava no ensino fundamental e não pode realizar seus sonhos e se desenvolver, como deveria ser direito de todas as crianças e adolescentes.

A revitimização também ecoa nos relatos das mídias comerciais sobre as ações violentas da polícia, que costumeiramente contribuem para um duplo processo de violação ao criminalizar corpos favelados e negros”. 

Em 2020, Emily Vitória e Rebecca Beatriz, de 4 e 7 anos, brincavam na calçada quando foram mortas a tiros, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense-RJ. Micael Silva Menezes foi assassinado quando tinha 11 anos, também em 2020, durante uma operação policial no Nordeste de Amaralina, em Salvador, enquanto brincava com um amigo de “empinar arraia”.

Mais recentemente, em novembro de 2024, Ryan da Silva Andrade Santos, também brincava em frente à casa de uma prima no Morro do São Bento, em Santos (litoral de SP) quando foi atingido por um tiro. 

Mas outros casos são emblemáticos e seguem sem respostas à altura da gravidade na promoção de justiça. Ao contrário, seus desdobramentos têm resultado em não responsabilização dos agentes de Estado e revitimização de famílias que buscam justiça. 

A exemplo, a recente absolvição do policial militar que vitimou Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, quando estava em 2019, na favela da Fazendinha, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro.

Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos, foi baleada dentro da escola em 2017, em Acari, na Zona Norte do Rio. Na mesma região, que onze anos antes, em 1996, Maicon de Souza da Silva, de apenas 2 anos, foi atingido quando brincava na porta de casa. Nenhum dos policiais militares envolvidos foi levado à Justiça.

Nesse processo, diversos direitos são violados, como o direito ao lazer, à brincadeira, garantindo um desenvolvimento saudável; o direito à educação e à saúde, de ir e vir, à segurança, e, por fim, o direito à vida. 

De acordo com dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2023, 15,8% das mortes por intervenção policial ocorreram dentro de residências, enquanto 82,7% das vítimas eram negras. Entre as vítimas de letalidade policial, 6,7% eram adolescentes entre 12 e 17 anos. 

Falhas no sistema de justiça e na perícia

O informe problematiza a falta de resolução e lentidão nos processos judiciais de vários dos casos envolvendo crianças e adolescentes vítimas do Estado e questiona que, em diversas vezes, os casos são encaminhados à justiça militar, representando um obstáculo à efetiva responsabilização dos agentes e instituições envolvidos, quase sempre incorrendo à tese da legítima defesa. Aponta ainda a falta de transparência e de assistência aos familiares como violações que sobrepõem os homicídios. 

Segundo o informe, o sistema pericial falho, a ausência de transparência nas investigações e a falta de autonomia das perícias também agravam a crise de direitos humanos no país. Entre os problemas observados, estão a falta de laudos, de infraestrutura, de qualidade, de métodos científicos, de capacitação e a desvalorização da perícia pela classe policial 

“O que se encontra na realidade brasileira é uma redução do papel dos órgãos de perícia a um aparato legitimador da investigação policial e dos relatórios policiais”, diz o texto, apontando a falta de presunção de inocência e o direito à ampla defesa como processos que pioram o cenário. 

Organização pede que CIDH faça recomendações ao Estado brasileiro

Entre as recomendações enviadas à CIDH, a Justiça Global solicita: 

  • Garantia do desenvolvimento integral de crianças e adolescentes;
  • Criação de protocolos periciais independentes e detalhados;
  • Assistência integral de saúde às vítimas e seus familiares;
  • Ampliação da transparência nos processos investigativos e judiciais.

A organização reforça a necessidade de ações urgentes para cessar as violações e garantir justiça e reparação para as comunidades afetadas.

Leia o relatório completo.

Foto da capa: Velório de Marcus Vinicius, filho de Bruna Silva, do Movimento Mães da Maré. Crédito: Mauro Pimentel/AFP.

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