Documento foi elaborado após missões realizadas entre novembro de 2023 e fevereiro de 2024.
Lançado no Rio de Janeiro–RJ e em Salvador–BA na última semana, o relatório da missão da Plataforma Dhesca Brasil sobre o impacto da letalidade policial nas infâncias negras nos dois estados levantou 53 recomendações para o atendimento das vítimas.
O objetivo é que seja uma ferramenta de fortalecimento da luta por memória, justiça e reparação para vítimas de letalidade policial, além de apoio à implementação de políticas públicas eficazes para combater esse massacre ininterrupto contra crianças e adolescentes negros.
O documento foi elaborado pelas relatoras nacionais de direitos humanos Iara Moura e Iolete Ribeiro da Silva, que realizam visitas e entrevistas com familiares de vítimas de letalidade policial, ativistas, defensoras e defensores de direitos humanos, órgãos do Estado em Salvador e no Rio de Janeiro entre novembro de 2023 e fevereiro de 2024.
“O racismo institucional e a necropolítica confinam as infâncias negras a uma realidade militarizada e marcada por omissões, impunidade, violências e abusos por parte do Estado brasileiro”, observam as relatoras no texto.
“Quando não são seus corpos miúdos os “encontrados” pelas balas perdidas nas ações e operações policiais, são eles que choram a morte de amigos, irmãos, parentes, vizinhos… São atravessados pela orfandade precoce com a morte violenta”, completam.
As pesquisadoras também apontaram os efeitos sobre os direitos à educação, à circulação, ao lazer, entre outros, causados sobre a rotina de medo de moradores de territórios onde sobretudo vivem populações empobrecidas, principalmente negras.
As indicações foram direcionadas ao governo federal e aos governos estaduais da Bahia e do Rio de Janeiro; ao sistema de justiça; aos conselhos de direitos e de controle externo; aos poderes legislativos federal, estadual e municipal; e às plataformas digitais. Familiares de vítimas de várias chacinas no Rio de Janeiro, como a de Costa Barros, em 2019 – com a morte de cinco jovens negros, a de Acari, em 1990 – com sequestro e morte de 11 jovens da favela da zona norte carioca, também participaram da escuta.
“Não é um caso isolado”, destaca Deize Carvalho, mãe de Andreu Luiz Carvalho, torturado e morto em 2009 por agentes penitenciários do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase). “No Brasil, não vivemos um Estado democrático de direito, mas sim um Estado de morte […]. Exigimos reparação pelo caso de Andreu […]!”.
A missão teve colaboração da Justiça Global e outras organizações que também compõem a Plataforma Dhesca: Rede de Observatórios da Segurança, Odara – Instituto da Mulher Negra, Ideas – Assessoria Popular, Instituto Fogo Cruzado, Iniciativa Negra por uma nova política sobre drogas, C.R.I.A – Centro de Referência Integral de Adolescentes e o Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas.
Os alvos da violência policial têm cor
Das 6.393 vítimas de letalidade policial em todo o país em 2023, segundo o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 71,7% eram crianças, adolescentes ou jovens com idades entre 12 e 29 anos. Do total, 82% eram negras.
A pesquisa aponta que a taxa de mortalidade de pessoas brancas foi 0,9% para cada 100 mil pessoas brancas, enquanto entre negros, a taxa foi de 3,5%, ou seja, 289% superior.
Rio de Janeiro e Bahia foram os Estados com o maior número absoluto de vítimas em intervenções policiais, 1.699 e 871 respectivamente. Ao todo, as oitivas nas capitais dos dois estados reuniram parentes, principalmente mães, de mais de 60 vítimas. Vários relatos abordaram as violações de direitos humanos também na luta desses familiares por justiça.
Uma dessas histórias foi de Geovana Nogueira, de 11 anos, criança morta em 2018 com um tiro na cabeça por um policial militar na comunidade Paz e Vida, no bairro Jardim Santo Inácio, Salvador. A mãe dela, Maria Ângela de Jesus Nogueira, relatou constrangimentos sofridos no júri. O militar foi absolvido por falta de provas e pelas fragilidades das provas periciais produzidas pela Polícia Civil.
O problema dos dados
As relatoras observaram ainda a subnotificação, do apagamento ou ausência do perfil racial das vítimas nas bases de dados públicos, além da falta de metodologias precisas, unificadas e transparentes como problemas decorrentes do racismo institucional.
A mídia, a construção de imagens de corpos matáveis e a justificativa do injustificável
As relatoras também adicionaram ao documento o problema da abordagem da mídia comercial nos casos de ações violentas da polícia, a classificando como cúmplices ao contribuir “para uma situação de dupla violação e de revitimização”. As pesquisadoras apontaram as situações em que a imprensa vincula recorrentemente as vítimas ao crime organizado e com o envolvimento em tráfico de drogas ou ainda subestimam a violência em casos que assassinatos ocorreram durante troca de tiros. “Como se fosse mal menor diante do combate ao crime”, relatam.
O relatório levanta dez nomes que ingressaram na carreira política após serem apresentadores de programas policialescos em rádio ou TV (e que se expande para a internet e o meio digital).
Elas também chamam atenção para o aumento de agentes públicos das forças de segurança se tornando influenciadores ou produtores de conteúdos digitais, com postagens que reduzem as dores e culpabilizam a famílias incitam ações violentas por parte da polícia, atacam defensores de direitos humanos, as leis de proteção a grupos vulneráveis e órgãos como o Ministério Público, responsável pelo controle externo da atividade policial.
Plataforma Dhesca também lançou relatório sobre violações no sistema socioeducativo feminino
Também foi lançado neste ano pela Plataforma Dhesca o relatório sobre a situação das adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação no Brasil, realizado pela relatora Isadora Salomão e assessoria técnica Nathalí Gillo. Foram realizadas missões em São Paulo, Ceará e Rio de Janeiro, entre março e abril de 2022.
“Os mais de trinta anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e os dez anos do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) não fizeram com o que o socioeducativo no Brasil e seus impactos sobre adolescentes, meninos e meninas, cis e trans, tenha se diferenciado substancialmente à realidade do sistema prisional. Com isso, compreendemos que os centros de internação são análogos às prisões para adultas e, portanto, devem ser abolidos”, escreve a relatora.
Acesse o relatório na íntegra.
Foto da capa: Rio de Janeiro (RJ), 17/08/2023 – O movimento de familiares de vítimas de violência policial do estado do Rio de Janeiro faz ato, em frente ao Palácio Guanabara, para protestar contra as operações letais que ocasionaram mais de 100 vítimas no ano de 2023, nas favelas e periferias do Rio. Foto:Tânia Rêgo/Agência Brasil.