9 a 2. Por imensa maioria, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) votou pela continuidade da suspensão das operações policiais durante a pandemia, salvo situações de absoluta excepcionalidade. A decisão, proferida inicialmente no início de junho pelo Ministro Edson Fachin, foi conquistada na ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas. A mobilização em torno desta ação reúne movimentos negros, de favela, de mães e familiares de vítimas da violência, organizações de direitos humanos, pesquisadores da segurança pública, todos unânimes ao avaliar: o STF encontra-se diante de uma oportunidade histórica de colocar um fim à política de mortes implementada no estado do Rio.
A eloquência não está apenas no discurso, mas também nos dados. Diversos estudos avaliaram o impacto da decisão de suspensão das operações policiais durante o seu primeiro mês de vigência, concluindo pelo sucesso retumbante da medida. O Grupo de Estudos GENI, da Universidade Federal Fluminense, em conjunto com o laboratório de dados Fogo Cruzado, comprovou a acachapante redução de 73% na letalidade policial no período. A Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial registrou uma queda de 70% das operações policiais na Baixada Fluminense.
Até mesmo os dados oficiais do governo do estado, compilados pelo Instituto de Segurança Pública, demonstraram o sucesso da medida. A polícia fluminense, que quebrava seus recordes de letalidade mês a mês, teve enfim o mais baixo patamar de letalidade em 54 meses. De 177 mortes em abril e 129 em maio, já durante a pandemia, passou-se a 34 em junho, após a decisão. Tal redução veio acompanhada de uma queda nos índices gerais de criminalidade, levando à lona argumentos infundados de eficácia da política de confronto para a diminuição da violência. Houve redução em 47,7% dos crimes contra a vida, sendo de 39,9% em relação aos homicídios dolosos. Os crimes contra o patrimônio caíram 39%.
A convicção que os números trazem não poderia ser outra, que se espelha na vivência prática dos moradores de favela: a decisão do STF salva vidas, e é preciso zelar pelo seu cumprimento. Em tempos de dúvidas e anseios sobre o retorno à normalidade no mundo pós-pandemia, as favelas do Rio já sabem a resposta: não é mais possível o retorno ao normal. A conivência institucional com práticas de extermínio, com o genocídio negro, com o racismo que estrutura historicamente a política de segurança no estado não pode ser mais considerada compatível com qualquer acepção que se queira conferir ao termo “Estado Democrático de Direito”. Para fazer valer a democracia e os princípios basilares de direitos humanos nas favelas do Rio, é preciso coragem para uma guinada histórica nos rumos da política de segurança do estado.
A vitória perante o STF descortina a política do “tiro na cabecinha” como o que ela efetivamente é: uma ode ao genocídio com as vestes de política de segurança pública. Não há critério razoável que permita a sua continuidade. Não é eficaz, atenta contra a dignidade humana, não encontra qualquer parâmetro de legalidade dentro de padrões democráticos. Interromper este ciclo foi um primeiro e importante passo, uma conquista alicerçada por anos de luta de diversos setores da sociedade civil, sobretudo dos movimentos negros e de favela.
Mas é ainda muito pouco. O STF retoma, nesta sexta-feira (7), o julgamento das medidas cautelares propostas pela ADPF das Favelas, que sedimentam as bases para uma nova política de segurança no estado. Para impedir o ciclo de mortes e de graves violações a direitos fundamentais, a ADPF propõe medidas urgentes e necessárias para enquadrar a atuação das polícias em mínimos padrões de dignidade humana. Dentre elas, estão a construção de um plano de redução da letalidade policial, em conjunto com a sociedade civil, a proibição do uso de helicópteros como plataforma de tiro e instrumentos de terror, o respeito aos perímetros de escolas e equipamentos de saúde, o uso de câmeras, presença de ambulâncias nas operações policiais, o aprimoramento de mecanismos de controle externo da atuação policial e dos procedimentos de investigação.
Se a pandemia escancara as desigualdades e o racismo reinantes na estrutura social brasileira, ela também escancarou a perversidade da máquina de mortes gerida pelo estado do Rio de Janeiro. Qual será, então, o “novo normal” da segurança pública? Para essa resposta, os ministros do STF tem a caneta em punho. A oportunidade, enfim, está lançada.
Glaucia Marinho é coordenadora e Daniela Fichino é advogada da Justiça Global.
Publicado originalmente em 06/08 no Uol.
Foto capa: Tomaz Silva/Agência Brasil