Veja a participação da Justiça Global na audiência do STF sobre monitoramento do sistema prisional

Assista aqui a fala de Monique Cruz, pesquisadora de Violência Institucional e Segurança Pública da Justiça Global, e Isabel Lima, coordenadora da Justiça Global, na audiência no Supremo Tribunal Federal (STF), que aconteceu no dia 14 de junho, para debater o Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) do sistema penitenciário brasileiro, o cumprimento do Habeas Corpus (HC) 165704 e o papel dos tribunais no enfrentamento da superlotação carcerária.

No final da intervenção foi transmitido um vídeo com a fala da Maria Linhares, produzido pela Agenda Nacional pelo Desencarceramento, articulação nacional que reúne familiares, sobreviventes do cárcere, movimentos e organizações, da qual a Justiça Global faz parte desde sua fundação. Leia a fala completa:

Boa tarde, Excelentíssimo Ministro Gilmar Mendes e Excelentíssimos Ministros e Ministras deste Supremo Tribunal Federal. Cumprimentamos também as expositoras e expositores, às pessoas que trabalharam para permitir que esta audiência acontecesse e a quem nos acompanha remotamente.

Eu, Monique Cruz, e minha colega Isabel Lima, saudamos a iniciativa de realização desta audiência pública em nome da Justiça Global, organização que atua há mais de 20 anos na defesa dos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade no Brasil.

Iniciamos chamando atenção para fatores pouco considerados quando tratamos das ações ou políticas de enfrentamento ao estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário nacional. As particularidades do punitivismo brasileiro promovem o encarceramento seletivo em massa de pessoas negras e a transcendência da punição para suas familiares e comunidades. Promovendo a violência inerente ao cárcere ao passo que gera falsa sensação de segurança e a reprodução infindável de práticas racistas e sexistas.

O sofrimento físico e psíquico promovido pelas condições desumanas e degradantes marcadas por instalações insalubres, pela falta de luz solar, pela proliferação de doenças, pela água que é limitada nas torneiras, mas abundante nas infiltrações representam a institucionalização da tortura destinada a pessoas consideradas historicamente menos humanas.

No Brasil as pessoas privadas de liberdade morrem por hipovitaminose. A falta de vitamina B e de vitamina “D” tem sido causa mortis de pessoas mantidas sob a responsabilidade do Estado. A reprodução da condição do cativeiro registrada em documentos históricos se materializa hoje nas prisões brasileiras.

Identificamos a cada ano o aprofundamento das condições de desumanidade nos cárceres do Brasil, acompanhamos de perto o sofrimento produzido dentro e fora dos muros das prisões pelo trabalho de acompanhamento in loco das violações de direitos humanos. Historicamente a Justiça Global constrói sua incidência em conjunto com as pessoas diretamente atingidas pela violência estatal em suas múltiplas dimensões e formas.

E é por isso, que destacamos as formas de violência que emergem do cárcere em direção às mulheres, as privadas de liberdade, e aquelas que seguem enredadas nas malhas do sistema de justiça criminal para prover o cuidado para com seus familiares. Formas de violência específicas que atingem material e psiquicamente mulheres que têm sido encarceradas de maneira massiva pela via da chamada guerra às drogas, ou que tem tido seu corpo invadido e violentado por meio da persistente prática da revista vexatória ou da criminalização. Saudamos a memória das defensoras de direitos humanos participantes das lutas anti-cárcere que foram assassinadas nos últimos anos.

Passo a palavra à minha colega Isabel Lima.

Boa tarde a todas e todos.

Ainda sobre as violências produzidas nas prisões, cumpre destacar que o uso ilegal e abusivo da força por agentes do Estado, incluindo armas menos letais, é generalizado nos espaços de privação de liberdade. Não existem regras internas robustas para controle do uso da força e os atores competentes não têm oferecido respostas efetivas com relação a fiscalização e responsabilização por ações ilegais e abusivas. A Justiça Global analisou protocolos de uso da força à luz dos parâmetros internacionais de direitos humanos e pudemos constatar que a regulação normativa existente está distante destes parâmetros. A legislação brasileira, de um modo geral, permite expressa ou implicitamente o uso de equipamentos vedados ou não recomendados pelas normas internacionais, assim como o uso de equipamentos em situações nas quais não deveriam ser empregados. Tais práticas violentas que marcam o cotidiano das prisões demonstram a permanência histórica de práticas coloniais racistas de imposição de dor, castigo e controle.

A pandemia de COVID-19 só fez aprofundar as violações e escancarar essa realidade cruel. Além de não oferecer condições mínimas para evitar a proliferação do vírus em espaços de confinamento insalubres e superlotados, a incomunicabilidade das pessoas privadas de liberdade foi a principal resposta apresentada para controle da Covid-19 nas prisões, aumentando o sofrimento das pessoas presas e de suas famílias e as denúncias de tortura. Não temos informações confiáveis e transparentes sobre o número de pessoas infectadas, mortas, tratadas e sequer testadas nas prisões brasileiras. Considerando o aumento da tensão por conta da suspensão das visitas, o Departamento Penitenciário Nacional como resposta destinou recursos para compra de armamento menos letal com intuito de prevenir tumultos.

E é diante desse cenário brutal de banalização do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro que o país tem vivido nos últimos anos o desmonte da política nacional de prevenção e combate à tortura, operado sobretudo a partir do decreto presidencial nº 9.831/19. Dentre outras graves mudanças, o decreto tornou não remunerado o serviço prestado pelo mecanismo nacional de prevenção e combate à tortura, o que significa um ataque à autonomia e independência do órgão e na prática a inviabilização do trabalho de monitoramento, em evidente descumprimento da obrigação internacional assumida pelo Estado Brasileiro ao ratificar o protocolo facultativo à convenção contra à tortura da ONU.

A Justiça Global é representante de medidas provisórias concedidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em três casos relativos a espaços de privação de liberdade. No âmbito da tramitação das medidas relativas ao Complexo Prisional do Curado, a Corte afirmou que a superlotação decorre da política de encarceramento em massa e que o Estado brasileiro deveria promover o desencarceramento ao invés de abrir novas vagas para supostamente resolver o problema. Reconheceu ainda que as condições desumanas violam a Convenção Americana de Direitos Humanos e com base na súmula vinculante 56 deste Tribunal, determinou que novos presos não ingressassem em unidades superlotadas. Além disso, determinou que 1 dia do cumprimento da pena seja contado como 2 de forma a compensar de alguma forma o sofrimento antijurídico produzido pelo encarceramento em condições desumanas e cruéis.

Contudo, estas, assim como outras medidas desencarceradoras e que buscam frear o superencarceramento no país, determinadas não só pela Corte Interamericana, mas produzidas no âmbito interno, como as audiências de custódia, ou as medidas contidas na recomendação 62 do CNJ publicada no contexto da pandemia, encontram fortes entraves no sistema de justiça para sua efetivação.

A Justiça Global se junta às vozes que lutam para que o Brasil implemente uma política efetiva de redução das violências produzidas pelo cárcere que só se efetivará através da redução massiva da população prisional. Para encerrar, gostaria de solicitar que seja transmitido o vídeo com a fala da Maria Linhares, produzido pela Agenda Nacional pelo Desencarceramento, articulação nacional que reúne familiares, sobreviventes do cárcere, movimentos e organizações, da qual fazemos parte desde sua fundação.
Obrigada.

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