A Justiça Global enviará nos próximos dias uma denúncia à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA), em que relata a iminente ameaça a direitos humanos decorrente de um acordo a ser firmado entre as mineradoras Samarco, Vale e BHP e o poder público federal e estadual. O acordo encerra a ação civil pública que está sendo movida contra as empresas pelas violações humanas, sociais e ambientais decorrentes do rompimento da barragem de rejeitos do Fundão, em Mariana, no dia 5 de novembro de 2015.
Desde a semana passada, a Justiça Global vem monitorando o andamento das negociações deste acordo extrajudicial, a ser firmado entre as mineradoras e o Governo Federal, o Estado de Minas Gerais e o Estado de Espírito Santo. A minuta do acordo foi divulgada na último dia 24 pela Agência Pública, em matéria intitulada “Samarco, Vale e BHP vão decidir quem e como indenizar por desastre”. Dentre as partes do acordo, constam ainda o Ministério Público Federal, os Ministérios Públicos dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, além de diversos órgãos federais e estaduais de fiscalização, regulação e monitoramento ambientais, como o Ibama, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e a Agência Nacional de Águas (ANA).
O acordo impacta severamente a população dos municípios afetados pelo desastre, em Mariana e ao longo de toda a bacia do Rio Doce. Ele cria uma Fundação privada que confere às mineradoras o poder de tratar de cada violação humana, social, econômica e ambiental no varejo. A Fundação, financiada pela Samarco, Vale e BHP, irá acertar o valor das indenizações com cada um dos atingidos, de maneira isolada, e poderá contratar advogados caso os atingidos discordem da indenização proposta. “Isto significa que as empresas responsáveis pelo desastre e pelas violações de direitos humanos dele decorrentes propõem e negociam um valor de indenização. Se não for aceito pelos atingidos e indiretamente impactados, estes podem se utilizar de advogados custeados pela própria Fundação para processar ela mesma. Esse mecanismo viola frontalmente as garantias do devido processo legal”, ressalta Alexandra Montgomery, advogada da Justiça Global.
Esse é apenas um dos mecanismos perversos que este acordo pretende implementar, o qual não contou com a presença de atingidos ou de movimentos sociais em sua elaboração. Foi feito totalmente às escuras, e sua divulgação apenas veio à tona com matéria realizada pela Agência Pública. “Este acordo é uma afronta aos direitos de todas as pessoas que sofrem com os efeitos deste desastre em suas vidas. E a ideia de que tudo possa ser ‘resolvido’ a portas fechadas entre a empresa e o poder público é uma afronta à coletividade. A extinção da ação civil pública por meio de um acordo desse tipo convém apenas às empresas, pois assinado o acordo e homologado não existe recurso que possa desfazê-lo. E com as partes autoras implicadas no acordo, não há como recorre”, enfatiza Alexandra.
O acordo também viola os direitos de comunidades indígenas e tradicionais afetadas ao longo da bacia do Rio Doce. Essas comunidades não foram igualmente comunicadas da existência desta negociação, o que frontalmente viola o seu direito à consulta livre, prévia, e informada, garantido pela convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Os programas executados pela Fundação seriam fiscalizados por um Comitê Interfederativo, composto por representantes do poderes executivos estaduais e federal. Da análise da minuta divulgada pela imprensa, se depreende que este Comitê exerce dois papéis: um relacionado ao apoio e definição das atuações da Fundação na elaboração e execução dos programas, e outro relacionado à fiscalização da execução destes mesmos programas. Há, contudo, o temor de que a independência de atuação de órgãos de regulação e fiscalização, como o Ibama, o DNPM, a Agência Nacional de Águas, bem como órgãos estaduais do Espírito Santo e Minas Gerais, seja constrangida pelos termos do acordo.
A minuta do acordo divulgada na quarta-feira estimava o valor dos danos em 20 bilhões de reais, mas, segundo as informações divulgadas pela imprensa na última sexta-feira, a versão atual do acordo implica no pagamento de apenas 4,4 bilhões de reais nos primeiros três anos, de forma parcelada. O montante restante, de valor ainda incerto, seria desembolsado ao longo de dez anos. Segundo informações repassadas nesta segunda-feira pela Advocacia Geral da União ao Comitê em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, o acordo ainda não foi assinado, mas as tratativas estão em estágio avançado.
A Justiça Global enviou em dezembro à ONU um relatório sobre as violações de direitos humanos decorrentes do desastre. A denúncia aos organismos internacionais sobre as negociações do acordo tem a função de mantê-los informados sobre as ameaças de direitos daí decorrentes, salienta a advogada: “Temos o dever de atualizar as informações para esses organismos internacionais apresentando uma visão crítica desses acordos que visam beneficiar empresas, criam uma dupla violação aos direitos das pessoas e comunidades atingidas, ignorando-as completamente e retirando delas a condição de sujeitos de direitos”.
Além de denunciar a negociação às às relatorias das ONU para a Independência do Judiciário, para Povos Indígenas, e às relatorias da OEA sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e sobre os Direitos dos Povos Indígenas, a Justiça Global enviou na sexta-feira (26) pedidos de informações a todos os órgãos públicos que constam como parte do acordo. Até o momento, apenas a Diretoria do Departamento Nacional de Produção Mineral (DPNM) respondeu ao ofício, declarando que não iria se pronunciar sobre o tema.
“Precisamos informar os órgãos internacionais dos desdobramentos que estão sendo feitos aqui no Brasil. O mundo inteiro testemunhou a vida de milhares de pessoas sendo devastadas por essas empresas. Precisam ver também como a desgraça delas se tornou um negócio”, sublinha a advogada da Justiça Global