A Relatoria Especial sobre a situação dos defensores da ONU coleta informações sobre a situação dos defensores de direitos humanos no mundo inteiro. Para cumprir este mandato, a Relatoria elabora relatórios anuais sobre temas específicos que dizem respeito à proteção dos defensores, com diagnósticos globais que são muito úteis para fazer avançar essa proteção. A Justiça Global acompanha e subsidia esse trabalho.
Enviamos subsídios para o último Relatório sobre Defensores no contexto do enfrentamento das empresas, que foi apresentado no último 25 de outubro em Nova Iorque. O texto abaixo é um resultado do nosso posicionamento acerca das conclusões desse Relatório, que, em suma, poderia ter sido mais corajoso nas recomendações aos Estados.
Empresas e Direitos Humanos e o Relatório do Relator Especial para a Situação de Defensoras e Defensores: avanços e limitações
No último dia 25 de outubro, a Relatoria Especial sobre a situação de Defensores de Direitos Humanos da ONU apresentou seu mais novo Relatório perante a Assembléia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque. Este documento tem como escopo visibilizar a situação de defensoras e defensores de direitos humanos no mundo inteiro que enfrentam o poderio de empresas, principalmente as transnacionais, cuja atuação carece hoje de marcos internacionais de direitos humanos mais concretos para responsabilizá-las pelas violações que cometem.
O interesse da Relatoria pelas defensoras e defensores que se encontram nesta situação específica decorre de um diagnóstico feito pelo próprio órgão sobre a vulnerabilidade desses atores e a cumplicidade de companhias e atores empresariais com violações de direitos humanos.
Para a Justiça Global, é de fundamental importância a iniciativa do mandato de dedicar esforços à visibilidade da situação das pessoas defensoras dos direitos humanos ameaçadas pelo contexto das atividades comerciais. Em nossos esforços para desencadear o avanço das regulamentações internacionais em relação a esta questão, o apoio aos mandatos dos Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas nos parece crucial. O Relatório traça um cenário muito preciso das ameaças às defensoras e defensores e também das estratégias utilizadas pelas empresas e pelos Estados no enfraquecimento do trabalho daqueles que atuam defendendo direitos.
Apoiamos com grande interesse que as denúncias da sociedade civil sobre a assimetria de poderes em relação às empresas e sobre a falta de mecanismos de responsabilização das mesmas reflitam-se no Relatório e sejam fatos que começam a ser cada vez mais reconhecidos na esfera internacional de uma maneira geral.
No entanto, é preocupante que as mesmas soluções ainda estejam sendo tomadas a sério para resolver essa injustiça histórica. Continuar a apostar em mecanismos não vinculantes (obrigatórios) e na capacidade individual e voluntária das empresas para incorporar e cumprir obrigações de direitos humanos nos parece uma medida paliativa e não ataca as causas mais profundas da violação de direitos pelas empresas.
A proteção das pessoas defensoras dos direitos humanos não pode ser restrita apenas a medidas reativas para ameaças e ataques, mas também precisa – e principalmente – de mecanismos preventivos. Nesse sentido, a responsabilização efetiva torna-se especialmente importante, pois serve como forma de impedir as empresas de colocar os lucros acima dos direitos dos povos.
Portanto, lamentamos que o relator em suas recomendações não tenha aproveitado a oportunidade para destacar a importância de adotar um tratado vinculante para responsabilizar as empresas por violações dos direitos humanos, atualmente discutido pelos Estados como uma solução mais eficaz nesses casos. Pelo contrário, o Relator recomenda a adoção de Planos Nacionais de Ação sobre Empresas e Direitos Humanos, em uma perspectiva voluntária e individualizante.
Quanto à questão do acesso à justiça, é muito importante que o Relatório tenha reconhecido a captura corporativa das autoridades estatais, principalmente do Judiciário. Gostaríamos que o Relator tivesse desenvolvido mais as medidas pelas quais a captura corporativa pode ser combatida, tanto para garantir a segurança das defensoras e dos defensores quanto para assegurar a reparação efetiva das violações, o que desempenha um papel muito importante na prevenção. A mesma falta se aplica aos procedimentos de justiça extraterritorial e também ao estabelecimento de sanções financeiras às empresas, medidas que poderiam ter sido melhor exploradas, principalmente nas recomendações, a partir, mais uma vez, da perspectiva de que a responsabilidade efetiva contribui para a prevenção mais geral de violações dos direitos humanos praticadas por corporações transnacionais e pelo enfrentamento às causas estruturais dessas violações.
Saudamos o destaque dado pelo Relatório à participação das defensoras e defensores no estabelecimento das medidas que a empresa deve adotar quando toma conhecimento sobre as violações dos direitos humanos em suas operações. Também a participação das defensoras e defensores na concepção de leis que versam sobre a devida diligência (due dilligence) parece muito correta. Cumpre ressaltar que a participação dos defensores, enquanto principais atingidos pela atuação das empresas, é crucial para garantir políticas públicas e legislação que efetivamente proteja estes atores.
Além disso, a visibilidade do papel das instituições financeiras internacionais e dos investidores na violação dos direitos nos territórios também é um avanço neste Relatório, mesmo que as obrigações dessas entidades pudessem ter sido formuladas de forma mais assertiva.
O Relatório também confirma uma tendência que tem se verificado no Brasil, bem como em outros países do continente em relação ao aumento de assassinatos de defensoras e defensores de direitos humanos, que no país alcança já quase 70 mortes em 2017. Apesar deste aumento, o Programa Nacional de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos encontra-se em franco desmantelamento.
O cenário interno, somado a uma conjuntura de ampliação da atuação das empresas nos territórios, cobra das instituições do sistema ONU posicionamentos assertivos e duros em relação ao avanço da normativa internacional, para que as mortes associadas à atuação de empresas possam ser evitadas e a violência contra defensoras e defensores efetivamente combatida.