Para compreender devidamente a complexidade perniciosa e alcance da tese do marco temporal, é preciso olhar para a realidade da luta dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
No Brasil, defensoras e defensores de direitos humanos sofrem violências diversas por seu labor, sobretudo no caso daquelas e daqueles que reivindicam o direito à terra e ao território. Em 2017, 52 defensores já foram assassinados, isso sem considerar todos os outros obstáculos enfrentados por eles em sua luta cotidiana, o que envolve criminalizações, ameaças, desqualificação de seu trabalho e constrangimentos diversos, não apenas contra si, mas também contra familiares. Na verdade, o ano de 2017 consolida o aumento na quantidade de assassinatos, que já vem desde 2015 pelo menos[1].
No caso de indígenas e quilombolas, há, ainda, o componente do racismo atravessando tais violências, na legitimação dos ataques a esses corpos e a suas culturas, com desqualificações e atribuição de estigmas.
E quem está do outro lado, atentando contra a vida e integridade física e moral dessas defensoras e defensores? São proprietários rurais, grandes conglomerados econômicos, corporações e muitas vezes o Estado, cujos agentes quando não agem diretamente, omitem-se na proteção de defensoras e defensores de direitos humanos.
Na verdade, é preciso que se compreenda que a luta de defensoras e defensores de direitos humanos, sobretudo indígenas e quilombolas, está imersa em um contexto mais amplo de uma disputa por modelos econômicos: de um lado a utilização da terra como principal fonte de exploração econômica e, do outro, perspectivas de uso não mercantil do território e que, no caso de populações tradicionais, refere-se à reprodução do seu modo vida, da sua cultura.
O fato de o Brasil ser o país mais perigoso para ativistas ambientais e rurais no mundo[2], segundo a Global Witness, está estritamente vinculado com o fato de a exportação de matérias primas responder por uma grande parte da nossa economia[3]. Isso sem falar nos megaempreendimentos, que geram a infraestrutura necessária para tal atividade e que, igualmente, incidem sobre os territórios.
Assim, a disputa colocada nos territórios reflete-se nos Tribunais, no Legislativo e no Executivo, deixando de ser apenas uma disputa por um modelo econômico, passando a ser também disputa por um modelo de sociedade. E o Direito, por suposto, é também mobilizado.
É nesse contexto, portanto, que se insere a discussão sobre o marco temporal. Trata-se de uma tese que ganhou relevância em 2009, durante o julgamento do caso Raposa Serra do Sol (Petição 3388), no Supremo Tribunal Federal (STF). Na decisão, o STF afirmou que a Constituição da República estabeleceu a sua data de promulgação da Constituição, 05 de outubro de 1988, como “insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Apesar de ter exprimido esse posicionamento, o STF também estabeleceu que os termos do julgamento do caso Raposa Serra do Sol valem apenas para o próprio caso; isto é, não vincula juízes ou tribunais do país quando do exame de casos de envolvendo direitos territoriais. No entanto, algumas demarcações de terras indígenas foram desconstituídas no STF pela aplicação da tese do marco temporal.
Com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 3239/04, proposta pelo Partido Democratas, a discussão sobre marco temporal ganhou outra dimensão. A ADIn foi proposta com o objetivo de questionar a constitucionalidade do Decreto 4887/03, aprovado para dar concretude ao mandamento constitucional do artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o qual ordena a titulação das terras quilombolas.
Da mesma forma que com os povos indígenas, a tese do marco temporal para os quilombolas impõe que qualquer território reivindicado por essas comunidades só poderia ser titulado se ocupado estivesse por essa comunidade em 05 de outubro de 1988. No caso quilombola, há, ainda, a questão do respeito à auto identificação, reconhecida no Decreto 4887/03, como elemento crucial a subsidiar a titulação do território em nome de determinada comunidade, mas que seria complementada por outros elementos de natureza objetiva.