Estado brasileiro pede desculpas por violações, mas não apresenta medidas efetivas para imediata titulação e reparação dos quilombolas.
As representantes das comunidades quilombolas de Alcântara chegam ao fim da audiência perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos esperançosas de finalmente ter ecoado no Estado brasileiro mais de 40 anos de luta na garantia de seus direitos e reconhecimento de seus territórios. Mas as respostas apresentadas pelo governo, pela primeira vez perante as representantes na audiência são atravessadas por enormes dúvidas que impedem o efetivo anúncio de vitória. O Estado Brasileiro fez, diante daquela Corte, afirmativas que sinalizam uma mudança de postura, fruto, isto é certo, da luta de mais de quatro décadas travada por centenas de comunidades quilombolas em Alcântara. Estes anúncios, no entanto, foram cercados de zonas fundamentais de incerteza quanto ao seu efetivo conteúdo, com expressões pouco precisas, palavras vagas, que mantém o futuro de Alcântara em um campo de grande insegurança institucional.
O Estado reconheceu que violou o direito à propriedade das comunidades quilombolas de Alcântara, na medida em que não levou a cabo a titulação de seu território, bem como que violou o direito à proteção judicial, não tendo oferecido remédio judicial rápido e eficaz. No entanto, não reconheceu propriamente as violações ao direito à propriedade associadas ao deslocamento forçado das comunidades quilombolas desalojadas nos anos 80, quando da instalação do Centro de Lançamento de Alcântara e que acarretaram severos danos de ordem social, econômica, cultural e ambiental.
Sobre a titulação do território étnico de Alcântara, afirmada pelo Estado como um direito daquelas comunidades quilombolas, nada de concreto foi efetivamente apresentado. A fórmula do Estado consiste em afirmar que haverá uma “titulação progressiva no prazo de dois anos”, sem, contudo, precisar qual a extensão ou localização dos territórios a serem titulados, e qual a forma jurídica de tais títulos. Para o Estado, tal definição ficará a cargo de um Grupo de Trabalho anunciado já durante os dias de audiência perante a Corte Interamericana, e formulado sem qualquer consulta às comunidades quilombolas envolvidas. A tal Grupo caberá, tal qual afirmado pela delegação do Estado Brasileiro na Corte Interamericana, conciliar os interesses de desenvolvimento do programa espacial brasileiro, com os direitos reconhecidos nacional e internacionalmente às comunidades quilombolas de Alcântara.
Às representantes, causa frustração que o reconhecimento do direito à titulação venha completamente esvaziado de conteúdo efetivo. Na melhor das hipóteses, apontou-se a predisposição de alcançar soluções mediadas – um caminho já trilhado nestas quatro décadas de luta. Causa, ainda, grande preocupação que a arena conciliatória proposta pelo Estado seja um Grupo de Trabalho cuja composição não confere paridade às representantes das comunidades de Alcântara, ou respeita suas formas associativas.
A noção de “titulação progressiva” causou perplexidade também aos próprios juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Corte formulou diversas perguntas ao Estado, na tentativa de, de fato, compreender o alcance da proposta apresentada. Diante de tamanha incerteza sobre os termos apresentados pelo Estado Brasileiro, a solução encontrada pelo Juiz Presidente Ricardo Pérez Manrique foi determinar ao Brasil que apresente suas propostas por escrito, para que possam ser avaliadas pelos representantes das comunidades quilombolas, e pela própria Corte Interamericana.
Noticiado à Imprensa Brasileira antes mesmo de ser oferecido às comunidades quilombolas de Alcântara, o pedido de desculpas apresentado pelo Estado Brasileiro veio com um formato pré moldado de publicização e exteriorização, novamente sem atender à necessária etapa prévia de consulta às comunidades. Como medida de satisfação do direito à verdade e à memória, não basta que o Estado diga que vai pedir desculpas. Ele deve também ouvir as comunidades sobre o que elas consideram suficiente e adequado em termos de formalização e publicização deste pedido. Certamente, levar notas às páginas dos jornais anunciando que fará um pedido antes mesmo de fazê-lo já foi o indício de que, ao Estado, talvez interesse mais fazer da desculpa um fato político, e não uma medida efetiva de satisfação.
Em meio à tamanha indefinição sobre o alcance da boa-fé do Estado Brasileiro, o sentimento de vitória tornou-se nublado. As comunidades de Alcântara querem crer que estão diante, efetivamente, de um passo rumo ao futuro – mesmo que tudo pareça, de algum modo, repetir as fórmulas do passado.
Assinam:
MABE – Movimento dos Atingidos pela Base Espacial
Justiça Global
MOMTRA – Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara
STTR – Sindicatos dos/as Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara
ATEQUILA – Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara
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FOTO DA CAPA: ANTÔNIO CRUZ/AGÊNCIA BRASIL