Retrospectiva 2023: Um fim de ano que anuncia o começo de um novo tempo

O ano encerra abrindo o ciclo de comemorações dos 25 anos da Justiça Global.

O período foi de consolidar passos para o amadurecimento da instituição, em especial, na estrutura organizacional, por meio de mudanças na sua direção e conselho, que também gerou o início de um novo paradigma para a comunicação. Tal movimento, de algum modo, celebra a história da organização na luta por direitos humanos, que só faz sentido porque é construída em parceria com os coletivos e defensores/as, locais, nacionais e internacionais.

Ao ser fundada, em 1999, a Justiça Global foi precursora no âmbito da atuação da sociedade civil brasileira nos sistemas internacionais de proteção de direitos humanos. Um dos casos dessa fase inicial levados à Corte Interamericana só agora, em 2023, chegou ao final: a denúncia da morte de Damião Ximenes Lopes por tortura. Ainda que incompleto o cumprimento da sentença 17 anos depois, conforme destacamos na cerimônia de encerramento, em outubro, a discussão no âmbito internacional sobre uma vítima do modelo asilar de cuidado em saúde mental foi um importante impulsionador da luta antimanicomial.

Outro importante marco no direito internacional, desta vez relacionado à soberania dos povos, foi o julgamento do caso dos quilombolas de Alcântara, do qual somos copeticionários ao lado do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE), a Associação do Território Quilombola de Alcântara (Atequila) e outros movimentos sociais locais, que estão há 40 anos na luta contra os atropelos do Estado brasileiro por meio da construção da Base Aeroespacial. A audiência, em abril, ainda aguarda a sentença e gerou um pedido de desculpas (incompleto, destacamos) pelo governo brasileiro.

Em julgamento em Santiago do Chile, delegação composta por representantes do MABE, STTR, Atequila, Clínica de Direitos Humanos, da DPU e a Justiça Global argumentaram pela acusação do Brasil por violações de direitos humanos dos povo quilombola de Alcântara.
Em julgamento em Santiago do Chile, delegação composta por representantes do MABE, STTR, Atequila, Clínica de Direitos Humanos, da DPU e a Justiça Global argumentaram pela acusação do Brasil por violações de direitos humanos dos povo quilombola de Alcântara. Foto: Divulgação/Justiça Global.

O caso evidencia a urgência do respeito à Consulta Prévia, instituída pela Convenção n.o 169 da Organização Internacional do Trabalho, ainda não efetivamente experimentada no Brasil – como mostra o primeiro volume da Coleção Caminhos, lançada neste ano pela Justiça Global –, direito ainda mais ameaçado pelo avanço, no Congresso Nacional, da tese do marco temporal, apesar de ter sido derrubada pelos tribunais superiores.

Tal violação contra os quilombolas de Alcântara também é decisiva por muitas razões. De um lado, a militarização em territórios periféricos. De outro, a importância da garantia de terra e território a comunidades tradicionais e a urgência de responsabilização das empresas em relação aos direitos humanos, tema discutido nacionalmente por meio de um marco legal e, no âmbito do Conselho de Direitos Humanos nas Nações Unidas, na rodada de negociações de um tratado internacional, a qual acompanhamos em Genebra.

O assunto também foi esmiuçado na nota técnica elaborada pela Justiça Global, em conjunto com a Justiça nos Trilhos e o Movimento Nacional de Direitos Humanos, apresentada no VIII Fórum Regional de Empresas e Direitos Humanos, que ocorreu no Chile, em outubro.

Mais uma denúncia pioneira, ao menos em relação ao Brasil, é a petição do caso da cabeleireira Luiza Melinho, mulher trans que teve negado seu direito à cirurgia de afirmação de gênero. Após 15 anos da denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ao lado dos movimentos de luta LGBTQIA+, como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e da defesa da vítima,  o caso foi apresentado à Corte Interamericana em setembro. A expectativa é que seja julgado no próximo ano.

 

 

Um ano para refletir sobre a política de proteção de quem defende direitos

O ciclo que encerrou se mostrou decisivo para a proteção de defensoras/es de direitos humanos, após um quadriênio de números alarmantes de assassinatos daqueles que são tão fundamentais para a democracia. Lançado em junho pela Justiça Global e a Terra de Direitos, o relatório Na Linha de Frente apontou 1.171 mortes entre 2019 e 2022. Os dados repercutiram nacionalmente, inclusive em jornais como a Folha de São Paulo e o Jornal Nacional.

As muitas formas de ameaças a defensoras/es de direitos humanos levaram a Justiça Global a procurar e ser procurada por diversas organizações para a realização de oficinas de proteção integral. Foram 20 formações ao longo de 2023. 

A necessidade de fortalecer políticas públicas ganhou notoriedade especial no país, sobretudo, no mês de agosto, após o assassinato brutal da liderança quilombola e ialorixá baiana Bernadete Pacífico. O fato ocorreu dias antes da eleição do Grupo de Trabalho Salles Pimenta – instituído pelo governo federal após determinação judicial no âmbito de ação em que a Justiça Global é amicus curiae e que responde à condenação na Corte Interamericana ao defensor assassinado em Marabá e que dá nome ao grupo. O GTT iniciou efetivamente as atividades em dezembro e deve elaborar o anteprojeto da Política Nacional de Proteção a Defensoras/es de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas.

oficina 1
Ciclo de oficinas de proteção integral realizada com lideranças indígenas do Vale do Javari em parceria com a Front Line Defenders e CTI. Crédito: Divulgação/Justiça Global.

A interseccionalidade se evidencia ao olharmos para as violações e violência política contra mulheres negras, cis ou trans, defensoras de direitos humanos, tópico em destaque no Seminário Internacional 5 anos de luta por Justiça por Marielle e Anderson, na Universidade Estadual do Estado do Rio de Janeiro, em setembro. Promovido pelo Comitê Justiça para Marielle e Anderson, do qual a Justiça Global faz parte, o evento trouxe reflexões e perspectivas críticas sobre as vivências de luta por justiça.

Já em em novembro, durante o mês da Consciência Negra, a atuação da Justiça Global na luta antirracista foi reconhecida na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, durante a solenidade de valorização da memória e resistência da população negra, organizada pelo mandato da vereadora Mônica Cunha (PSOL-RJ). Na ocasião, a diretora-adjunta da Justiça Global, Daniele Duarte e a coordenadora do programa de Violência Institucional e Segurança Pública, Monique Cruz, receberam moções de reconhecimento do trabalho desenvolvido na luta contra o racismo e por uma sociedade mais justa e livre de preconceitos. A diretora-executiva da organização, Glaucia Marinho, também esteve na lista de comunicadoras/es do Rio de Janeiro pelo trabalho antirracista que desempenham.

 

Caminhos por justiça socioambiental e climática 

 

O que ficou para o próximo ano, por outro lado, foi a ratificação do Acordo de Escazú – o  Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe. Enviado para o Congresso em maio, o texto está parado na Câmara dos Deputados.

O tratado pode marcar a postura do Brasil no cenário de crise socioambiental e climática que se acentua, sobretudo em relação àqueles que lutam pela defesa dos direitos e do meio ambiente. Entre esses, se destaca a situação das/os defensoras/es indígenas, principais ameaçados. Diante da situação do povo Pataxó na Bahia, por exemplo, que sofreu uma escalada de violência. Diante de denúncias levadas aos sistemas internacionais, a Corte Interamericana concedeu medidas cautelares para sua proteção em abril.

Tal crise aponta para múltiplos desafios, que exigem atenção redobrada para a garantia dos direitos humanos em qualquer suposta saída apresentada. Na 54ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, a Justiça Global apontou, em Genebra, as ameaças aos direitos humanos nas propostas de transição energética para enfrentar as mudanças climáticas. A organização chamou a atenção para projeto de produção de hidrogênio verde no Maranhão, em vias de instalação.

Monique Cruz, coordenadora de programas, representou a Justiça Global na 54a Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Monique Cruz, coordenadora de programas, representou a Justiça Global na 54a Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Foto: Divulgação/Justiça Global.

Fundamental para o enfrentamento da crise climática também é a devida responsabilização do setor produtivo. Sobre isso, em junho, pedimos para ingressar como amicus curiae, ao lado da Associação Interamericana de Defesa Ambiental, na ação cívil pública solicitada pela Conectas na justiça federal para estabelecer parâmetros de segurança climática ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.

Ambas as questões e a importância da participação das comunidades tradicionais nas decisões relacionadas ao meio ambiente, foram pontos abordados pela contribuição, feita em parceria com a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) para o parecer consultivo da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre Emergência Climática e Direitos Humanos, enviado em dezembro.

 

Na pauta, a guerras às drogas, a violência policial e o encarceramento

 

Também na 54ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, a Justiça Global também organizou com parceiros do México e das Filipinas um evento paralelo para discutir os crimes cometidos pelos Estados sob a narrativa da Guerra às Drogas. O assunto também foi levado pela Justiça Global à sessão da ONU por meio do Diálogo Interativo com o Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária, onde apontou os pontos em comum em outros países do Sul Global dos efeitos violadores das políticas de segurança pública.

No debate na ONU, a representante do movimento Mães da Maré – conjunto de favelas da zona norte carioca –  Bruna Silva falou sobre o cenário de violência policial em favelas e periferias que gera violações do direito à vida, sobretudo de crianças negras, como seu filho Marcus Vinicius Silva.

Bruna Silva, do movimento Mães da Maré, falou sobres violações cometidas no contexto de Guerra às Drogas em evento paralelo à 54a sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Bruna Silva, do movimento Mães da Maré, falou sobres violações cometidas no contexto de Guerra às Drogas em evento paralelo à 54a sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Foto: Divulgação/Justiça Global.

As respostas das instituições estatais, no entanto, mais reforçam essa lógica e repetem violações do que sinalizam qualquer saída a partir dos direitos humanos, como destacamos na nota de posicionamento sobre o anúncio do Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas (ENFOC), do Ministério da Justiça.

Quando não, resultam em uma política de encarceramento em massa, que tem a tortura como pano de fundo, é o que mostra a situação do Complexo do Curado, em Pernambuco, uma das três unidades prisionais das quais a Justiça Global é peticionária de medidas provisórias na Corte Interamericana. Em outubro, acompanhamos a visita do Ministério de Direitos Humanos à unidade, e, a partir dos relatórios trimestrais, pudemos observar as mudanças passados 12 anos após a primeira denúncia, onde 90% das pessoas privadas de liberdade ali são negras.

Em novembro, o STF deu um sinal importante ao determinar que o governo do Rio de Janeiro preveja metas de redução da letalidade e “parâmetros seguros para emprego excepcional da força letal”. A decisão é tomada no âmbito da ADPF 635, da qual a Justiça Global é amicus curiae e também afirma que a letalidade no estado deve ser reduzida em 70%.

Para avançar, também é importante a internalização dos parâmetros do uso da força, como estabelecem os Protocolos de Istambul e de Minnesota, como demonstrou o diálogo durante as oficinas com movimentos sociais realizadas em agosto. Caminhos preventivos também foram discutidos meses antes, em maio, na visita da subsecretária-geral das Nações Unidas e assessora especial para Prevenção de Genocídio, Alice Wairimu Nderitu, e, em dezembro, da equipe do Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes para promover a Justiça Racial e a Igualdade no contexto da Aplicação da Lei (EMLER).

Encerramento do Ciclo das Oficinas Imaginativas e Afirmativas sobre Reparação Integral, feito com familiares de vítimas da violência policial. Crédito: Divulgação/Justiça Global.
Encerramento do Ciclo das Oficinas Imaginativas e Afirmativas sobre Reparação Integral, feito com familiares de vítimas da violência policial. Foto: Divulgação/Justiça Global.

Nesse campo, pensar em saídas é urgente, mas para isso, é preciso ousar imaginar. Um dos caminhos é atingir a cadeia produtiva, conforme propõe a Declaração de Shoreditch, documento assinado por 30 organizações do mundo, entre elas a Justiça Global, e que pede um Tratado de Comércio Livre de Tortura. Outro, primordial, é avançar nas propostas contidas na Agenda Nacional pelo Desencarceramento, cujos dez anos de história foram registrados na última publicação da Justiça Global.

É certo, por fim, que a busca por justiça não pode estar descolada na garantia de reparação integral. Diante dessa pergunta, cerca de trinta – especialmente – mulheres familiares da violência estatal estiveram reunidas em ciclo de encontros promovidos pela Justiça Global entre agosto e dezembro. As oficinas resultarão em duas publicações, com foco em reparação, previstas para o primeiro semestre do ano de 2024.

Reparação integral é tema ainda do próximo volume da Coleção Caminhos, também previsto para esse período, mas no campo da justiça socioambiental.

Sendo assim, após um breve período de descanso, a equipe da Justiça Global retomará suas atividades com força, afeto e determinação para dar continuidade à luta por justiça e garantia de direitos humanos a todas as pessoas.

Leave a comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *