O desrespeito aos direitos de manifestação e de liberdade de expressão da população brasileira foram denunciados em audiência na Organização dos Estados Americanos (OEA), nesta sexta-feira, em Washington (EUA). O Estado brasileiro, que em seu discurso trata a violência policial contra manifestantes e jornalistas como “supostos abusos”, foi criticado por não ter agido até hoje para coibir os crimes cometidos por seus agentes na repressão. Foram apresentados mais de 200 casos de violência praticada pelo Estado desde junho de 2013, com mais de uma dezena de mortos, além de casos de feridos – entre eles, um fotógrafo que perdeu a visão em São Paulo – e prisões arbitrárias. Foi ressaltado que, apesar do acúmulo de denúncias, nenhuma medida foi tomada. Isso fica claro ao se saber que até hoje não houve condenação de nenhum policial que cometeu abusos.
No momento em que o país lembra os 50 anos do golpe que estabeleceu a Ditadura, a sociedade civil ressaltou que há uma militarização e uma intensa perseguição não só dos manifestantes, mas também da população pobre, como forma controle social. Foram citados os projetos que tramitam no Congresso que buscam criminalizar e reprimir ainda mais as manifestações, assim como o uso do Exército para ocupar a Favela da Maré, no Rio de Janeiro, onde 10 pessoas foram mortas após um protesto sobre as passagens, em junho de 2013. Em um ano no qual o país terá um grande evento como a Copa do Mundo, evidencia-se uma escalada na violência institucional.
O advogado da Justiça Global Eduardo Baker fez questão de ressaltar que o discurso de defesa do governo na audiência da OEA não se sustenta. Ele lembrou da dificuldade do Estado de garantir o direito de manifestação da população, especialmente quando os protestos tratam de violência policial e de críticas ao próprio Estado, em greves ou nas manifestações pela redução das passagens. “Entendemos que há uma distancia imensa entre a criação de normas para regular a atuação policial e a implementação efetiva e a responsabilização pelos atos. Temos uma legislação saudada internacionalmente como democrática, mas é reconhecida também a distância entre as leis democráticas e aplicação concreta desses instrumentos na realidade brasileira”.
A audiência foi realizada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA, atendendo a um pedido das seguintes entidades: Justiça Global, Conectas, Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (ANCOP), Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), Serviço de Assessoria Jurídica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (SAJU/UFRS), Artigo 19, Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, United Rede Internacional de Direitos Humanos (URIDH) e Quilombo Xis – Ação Comunitária Cultural. Posteriormente, a CIDH poderá lançar uma nota repreendendo publicamente o Brasil. O resultado da audiência poderá ser usado como evidência de violações cometidas pelo Estado nos atos de rua em ações judiciais em cortes nacionais e internacionais.
Leia as declarações das organizações sobre a audiência:
Justiça Global – “Esperamos que, com a audiência, ocorra uma mudanca de atitude do Estado Brasileiro, que vem respondendo as mobilizações populares com repressão e criminalização. O direito a manifestação e a liberdade de expressão se encontram gravemente ameaçados. No ano em que lembramos os 50 anos do golpe militar, essa audiência abre espaço para o debate sobre a necessidade de uma mudanca profunda na segurança pública, que passa pela reforma estrutural das polícias e o debate da desmilitarização. E que o Estado não adote medidas legislativas de exceção que aumentam ainda mais a criminalização das lutas sociais”, afirmou Isabel Lima, coordenadora da Justiça Global.
Quilombo Xis – Ação Cultural Comunitária – “O Estado brasileiro tem tido uma prática que exclui, sequela e mata, por ação ou omissão e que tem em seu braço armado, constituído pelas polícias , o representante de uma política de Estado com bases no racismo e na violência. A criminalização de pessoas e grupos organizados, além do aprisionamento arbitrário daqueles que buscam reivindicar ou ratificar seus direitos, recaindo com maior brutalidade sobre a população negra e das periferias, reforçam a tática de eliminação daqueles que tem sido tratados como inimigos internos. Esperamos que a audiência possa indicar os caminhos para a erradicação desta prática e os rumos para uma sociedade possível para todos”, disse a coordenação da Quilombo Xis- Ação Cultural Comunitária.
Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro – “É inaceitável que o Estado brasileiro, responsável pela maioria das agressões a jornalistas nas manifestações, use a violência que é cometida contra esses profissionais como mote para projetos escusos, que tem o objetivo de restringir as liberdades no nosso país, como a lei antiterrorismo que tramita hoje no Congresso Nacional. Esperamos que a audiência na OEA promova uma mudança de atitude das forças policiais, e políticas, não apenas em relação aos jornalistas, mas à sociedade como um todo, que deve ter garantido o seu direito de manifestação”, disse Paula Máiran, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro.
Artigo 19 – “É inaceitável que o Estado brasileiro trate das demandas sociais como uma questão de polícia. A crescente criminalização, marcada pelas detenções arbitrárias e projetos de lei que aumentam as penas contra manifestantes, e a violência institucional empregada desde Junho de 2013 demonstram uma política voltada para reprimir e impedir a realização dos protestos. Esperamos que a audiência sirva para as necessárias mudanças na postura do Estado a fim de cumprir com o seu dever constitucional de proteger a liberdade de expressão”, afirmou Camila Marques, advogada da Artigo 19.
Conectas – “É inaceitável que o Estado interprete o exercício do direito à manifestação e à liberdade de expressão como algo perigoso. Essa visão pouco democrática pode ser traduzida na repressão policial cada vez mais violenta e desproporcional a qual os manifestantes têm sido submetidos e nas propostas de criminalização de condutas que, sob pretexto de garantirem a ordem, são na verdade instrumentos de repressão aos movimentos reivindicatórios”. Declaração de Rafael Custódio, coordenador de Justiça da Conectas.
Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS – “O Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS vem defendendo e promovendo os direitos humanos por 60 anos. Nesse sentido, consideramos inaceitável a criminalização de movimentos sociais enquanto país democrático; consideramos absurdo que tenhamos leis de exceção tramitando no Senado brasileiro e ilegal a maneira como a polícia de diversos estados vem tratando as pessoas que se manifestam na rua. Por isso, buscamos essa audiência para explicitar o que para nós é evidente: o Estado violou direitos humanos básicos de maneira sistemática durante as manifestações. Dessa forma, caso a Comissão entenda necessário, ela poderá repreender publicamente o Brasil e isso pode ser utilizado para, por exemplo, os processos judiciais, como meio de prova”, disse Mariana Chies S. Santos, advogada do SAJU/RS.