Por Monique Cruz, à Coluna da Rede de Justiça Criminal no Mídia Ninja
As mulheres negras do Brasil, século após século, vêm construindo coletivamente táticas e estratégias de cuidado e manutenção da vida material, emocional e espiritual de suas famílias. A socióloga Lélia González ressaltou em um dos seus brilhantes trabalhos que a força e a corajosa capacidade de luta pela sobrevivência dessas mulheres, nas favelas e bairros pobres, demonstram que elas são as portadoras da chama da libertação.
A luta pela vida travada por elas ganha novas formas na democracia, chamada por elas mesmas de Era das Chacinas e o mês de maio tem sido emblemático para a exigência de que se cumpra o direito à memória, à justiça, à verdade e à liberdade na democracia. A continuidade desse movimento é cada vez mais reconhecido como uma luta antirracista e está estruturada também na incidência sobre as instituições de Estado e suas obrigações constitucionais.
Tratam, sobretudo, da atuação cidadã de mulheres, a maioria Mães (assim mesmo, com letra maiúscula) que tentam garantir a vida de seus filhos e filhas em um país que não se dispôs a aceitar as rupturas propostas pelos diversos movimentos de libertação e descolonização, com seus modelos brutais de gestão da existência humana negra.
Nessa jornada, na qual toda a sociedade se movimenta quando as mulheres negras se movimentam – já disse Angela Davis, o direito de ser Mãe arrancado pelo Terrorismo do Estado condensa uma série de elementos que, para além de escrever em letra maiúscula o “M das Mães” e o “M do maio”, promove o incômodo da presença negra das mulheres que exigem o reconhecimento de humanidade de toda pessoa negra e o comprimento do papel de quem deveria, ao menos na letra da lei, garantir direitos e serviços sociais adequados sem discriminação de qualquer tipo.
É exemplo dessa força transformadora o movimento Mães Acari, do Rio de Janeiro, formado em reação à chacina de 11 jovens desaparecidos por agentes do Estado em 26 de julho de 1990. Mas na continuidade da Era das Chacinas, muitos outros coletivos organizados – e mulheres autônomas – inconformadas, fazem luto e luta se confundir. Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, Mães de Manguinhos, Mães de Maio, Mães do Jacarezinho, além das mães de pessoas privadas de liberdade.
Os movimentos de mães e familiares das vítimas do Terrorismo do Estado seguem na fronteira da luta contra o genocídio dos povos, sobretudo do extermínio de jovens negros. As Mães são as primeiras e últimas a gritarem pelo direito ao passado, ao presente e ao futuro de cada vítima.
Anos a fio, elas percorrem instituições públicas e privadas cobrando respostas. Nos mesmos lugares onde as pessoas negras são somente vistas quando funcionárias da limpeza, criminosas ou como corpo morto, a exigência dos direitos marca as paredes com faixas, cartazes, fotografias e história de vidas interrompidas pela ação brutal do Estado e suas máquinas de moer gente.
As falas das Mães e de outros familiares das vítimas do terrorismo de Estado à assessora especial para Prevenção de Genocídio nas Nações Unidas, Alice Wairimu Nderitu, durante sua visita ao Rio de Janeiro, no último dia 11 de maio, evidenciaram ainda outra face da política de morte do Estado brasileiro: o adoecimento sistemático dessas mulheres, que muitas vezes, culminam em mortes não contabilizadas na matemática superficial do genocídio.
Desta vez, umas das integrantes da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência do Rio de Janeiro, Laura Ramos de Azevedo, não pôde participar da agenda. Homenageada pela Justiça Global, no prêmio Maria do Espírito Santo Silva de 2019, ela partiu no último março sem ver o desfecho de uma busca por justiça que cravou na unha ao investigar por conta própria o assassinato de seu filho, de Lucas Albino, aos 18 anos, por policiais militares quatro anos antes. Laura foi vítima de um câncer e da violência do Estado. Laura Ramos Presente!
Naquele mesmo dia, dezenas de mães do Conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte do Rio, não conseguiram participar das atividades escolares do dia das mães com seus filhos porque o Caveirão voltava a aterrorizar as vielas da vizinhança. Tampouco na favela do Jacarezinho, ninguém conseguiu comemorar o domingo das mães diante dos tiroteios que se estendem há mais de quatro dias.
Em que pese a sanha punitivista e mortal do Estado brasileiro que segue sendo aprofundada, da direita à esquerda e vice-versa, a chama acesa daquelas que lutam pela vida continua mantendo de pé dezenas de mulheres que fazem do acolhimento sua força, que vêm construindo práticas de acompanhamento autônomas enquanto debatem e buscam criar condições para implicar o Estado brasileiro na reparação (e não-repetição) para todas as gerações pessoas negras vitimadas pelo Estado ou com sua anuência.
Monique Cruz, mulher negra da favela de Manguinhos (RJ), coordenadora do programa de Violência Institucional e Segurança Pública da Justiça Global e doutoranda da Escola Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).