“As pessoas dizem abertamente que mais cedo ou mais tarde vão me matar”. Conheça a luta de Manoel Mattos, por sua própria voz.

Manoel Mattos tinha uma longa trajetória em defesa dos direitos humanos, marcada sobretudo por um corajoso enfrentamento contra os grupos de extermínio que atuavam na fronteira entre Pernambuco e Paraíba. No depoimento a seguir, relatado no dia 28 de outubro de 2003 perante a Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados sobre os grupos de extermínio no Nordeste, Manoel conta um pouco de sua trajetória, dos arranjos políticos dos grupos e oligarquias locais, e das ameaças que sofria.

Minha área é o Direito. Sou advogado, militava na área sindical, trabalhista e de assessoramento jurídico de várias entidades sindicais do Estado de Pernambuco, e comecei a fazer um trabalho na minha cidade natal, Itambé, no sentido de investigação e fiscalização da administração pública local, onde vivia uma oligarquia de mais de 25 anos. Então, no mês de outubro de 2000, fui eleito o Vereador mais votado da história da minha cidade, com cerca de 10% dos votos válidos. E várias pessoas começaram a me procurar, várias pessoas começaram a buscar em mim um instrumento para que a gente pudesse auxiliá-los na questão dessa matança, do chamado mata-mata, da ação de falsos justiceiros.

A partir desse momento, eu comecei a procurar me inteirar mais, até porque várias pessoas começaram a morrer em escala, em série. Toda semana morriam 3, 4 pessoas. Toda semana. E aquilo foi me chamando a atenção. No Nordeste, a feira tem um simbolismo muito grande às segundas-feiras. Na segunda-feira, quando eu estava no meio da praça principal da cidade, conversando com taxistas e com outras pessoas que lá trafegavam, sempre ouvia a notícia: “Olha, na relação de quem vai morrer, vai morrer fulano, sicrano e beltrano”. E comecei a observar que aqueles que apareciam na segunda-feira como possíveis mortos realmente, no final da semana, eram executados. E isso me causou uma indignação muito grande. Eu tinha sido advogado de um trabalhador rural, que era homossexual, numa ação trabalhista. Quando me causou espanto que ele foi eliminado também por esse grupo de extermínio na cidade de Itambé, quando começaram a eliminar não apenas menores, delinqüentes, pequenos assaltantes, cheira colas, mas também começaram um trabalho de eliminação de homossexuais. Realmente ficamos bastante estarrecidos com esse fato.

Diziam: “Olha, morreu Xuxa, que era esse trabalhador, morreu Sandra do Maracatu e você está na lista”. Então, várias pessoas começaram a se mudar, a sair de Itambé e fugir, para o Rio, para São Paulo. Quando sabiam que o nome estava na lista, desapareciam. Alguns desses, por exemplo, quando compraram a passagem de ônibus lá em Itambé, quando foram em casa preparar as malas para poder viajar no outro dia, nesse interstício, foram eliminados. Então, era uma situação grave.

Aí eu queria fazer um esclarecimento e fazer um registro. Olhem, Srs. Deputados, eu tenho sofrido muito por conta dessa minha luta desde o ano 2000. Numa cidade de 34 mil habitantes, enfrentar velhas oligarquias, enfrentar adversários poderosos na região, inclusive, alguns com mandatos eletivo, e, mais ainda, você enfrentar o poder do Estado, o poder transversal, como dizia bem Humberto [da Silva Garça, promotor de Justiça do Estado de Pernambuco], poder podre, esse tecido podre do Estado que muitas vezes começa a deixar farsas e montando peças criminais para fazer com que você, vítima e denunciante, passe a ser criminoso.

Mas gostaria de dizer que esses grupos de extermínio não têm grande repercussão, e esse momento, essa sala vazia mostra isso. E falo com muita tranqüilidade, porque sou Parlamentar, sofro dos mesmos problemas que esta CPI sofre, porque, no uso, no meu trabalho como Presidente da Câmara atualmente, apresentei um projeto de resolução criando a Comissão de Direitos Humanos lá na Câmara Municipal. Consegui convencer os Vereadores a aprovar, mas não consigo fazer com que ela realmente ganhe vida útil à sociedade, pela falta de interesse de alguns colegas Parlamentares. Então, eu sei que o que está acontecendo aqui não ganha grande repercussão por uma simples razão: porque quem está morrendo são pobres; porque quem está morrendo são pessoas pretas, porque quem está morrendo são vítimas dessa sociedade excludente que essa elite forjou no nosso País.

Só para os senhores terem idéia, entre julho e agosto [de 2003], em 15 dias, do final de julho para início de agosto, morreram 2 PMs e 11 pessoas foram executadas. E o Secretário vai à televisão dizer que não há grupos de extermínio, que o povo pernambucano está tendo uma sensação de segurança pública, quando é de forma falaciosa. E mais do que isso: quando nós sabemos que há subnotificação; quando nós sabemos que determinados homicídios, determinados delitos, não são computados pela Secretaria de Defesa Social; quando nós sabemos e tivemos a confirmação da voz de um dos agentes públicos de segurança pública, quando diz que não eram feitos determinados exames, determinados meios de prova. Como o Ministério Público vai poder entrar com uma ação penal, levar ao Tribunal de Júri, e como o Estado vai punir, se você não tem nenhuma prova?

O Governo do Estado de Pernambuco, a que eu estou me referindo — mas isso é em diversos Estados —, não tem no IML, não tem prova do exame tanatoscópico, não tem o exame de balística, não tem nada. Para vocês terem uma idéia, eu trouxe para aqui projéteis, 2 projéteis. É muito engraçado como é que um Vereador consegue tantas provas, colecionar tantos documentos, e a polícia não consegue? O Governo não tem interesse em fazer. Consegui 2 projéteis  de um jovem, que, em 99, em Pedras de Fogo, sofreu uma tentativa de homicídio, perdendo um rim, tendo o estômago perfurado e perdendo uma perna, perdendo o movimento de uma perna, paralisando o movimento de uma perna. Isso em outubro de 1999. Não foi feito exame de balística, não foi feito nada. Ele, quando ia à delegacia, deparava com o algoz dele; para formalizar a queixa, o algoz dele estava lá ao lado delegado.

Quer dizer, por outro lado, a ação do grupo de extermínio é também uma forma de acumulação, uma forma de enriquecimento. Os comerciantes, grandes latifundiários, usineiros da região utilizam também essa mão-de-obra barata, desempregada, juvenil, adolescente; primeiro porque é barata, segundo porque são pobres, terceiro porque sabem da impunidade e a utilizam para fazer não só a questão da execução sumária, mas da limpeza da cidade, como dizem, “das almas sebosas”, mas também para fazerem outras transações: seguranças privadas, segurança de carro roubado, de roubo de carga e outras coisas. E precisa, portanto, de apuração do Estado. Ficou claro para mim durante esses anos que é patente o apodrecimento do aparelho policial. Mas é verdade que há vários homens e várias mulheres de bem, trabalhadores, cumpridores de suas tarefas constitucionais e que merecem todo o nosso louvor e toda a nossa admiração pelo trabalho que fazem, mesmo sendo perseguidos pela alta cúpula da polícia.

Fico estarrecido de chegar à conclusão de que há omissão do Estado. E lá no caso de Pernambuco há terceirização do monopólio da violência. O Estado realmente está terceirizando o monopólio da violência, quando nós observamos a quantidade de grupos de extermínio que estão acontecendo. Se o senhor pegar um distrito de Paudalho, Guadalajara, se pegar em Cavaleiro e Jaboatão, se pagar em Rio Doce, Maranguape, entre Olinda e Paulista, os senhores vão ver em plena atividade vários grupos de extermínio em Pernambuco, com a participação de policiais militares e civis, quando não é participação ativa, mas é de omissão, porque não apuram, porque não têm interesse, porque sabem que estão fazendo um trabalho que era para ser feito por eles. Mais do que isso: essa forma de gerenciar a segurança pública no nosso Estado tem levado realmente ao incremento de mortes, de homicídios.

A lentidão das autoridades em tomar providências é que tem provocado mais mortes. E, de certa forma, acabando com o trabalho que foi já realizado anteriormente, surgindo novos grupos, novos pistoleiros, porque é um mercado farto, de mão-de-obra barata. Desemprego entre 18 a 25 anos em Itambé, para o senhor ter uma idéia, Itambé hoje é 23ª cidade mais pobre de Pernambuco e está entre as 600 mais pobres do Brasil, mas não tem políticas públicas de inclusão social, de saneamento, de habitação popular, de educação, de geração de renda, de emprego e renda, o que vai fazendo esse caldeirão aumentar cada dia a violência desses setores relacionados a execuções sumárias.

Tenho sido vítima de uma ação orquestrada no sentido de desqualificar o meu trabalho feito durante esses 2 anos. Quer dizer, tenho passado por esses transtornos todos, afora as ameaças, afora tudo isso, o desrespeito, afora a desqualificação e a indignação. É uma situação realmente dramática que eu tenho vivido. Há semanas, recentemente, saiu uma matéria com vários políticos de Pernambuco que estão ameaçados, inclusive alguns Vereadores. Nessa matéria, o próprio Secretário de Defesa Social de Pernambuco diz: “Não é função do Estado proteger esses agentes. Esses agentes públicos devem procurar empresas de segurança particular para protegê-los”. Ora, uma autoridade de Segurança Pública está incentivando a privatização do monopólio da violência, da segurança pública. É uma coisa absurda, absurda.

Então fica ainda mais frágil a situação pessoal da nossa família. Tenho 3 filhos. Uma filha mora em Recife, não tem proteção. Outra filha mora comigo e estuda em João Pessoa, porque Itambé está mais perto, mesmo sendo Pernambuco, mais perto de João Pessoa do que da Capital pernambucana. Então ela sai de 5 e meia da manhã para estudar no Colégio em João Pessoa, sem proteção, sem nada, uma criança de 8 anos.  Quer dizer, eu vivo num inferno, em prisão domiciliar. A minha casa, a casa em que eu resido, com arame farpado, cheia de cadeado. Passa uma moto com maior violência, com maior barulho, eu me acordo assustado. As pessoas no bar, nas conversas — é uma cidade de 34 mil habitantes, todo mundo me conhece, sou filho natural de lá —, as pessoas dizem abertamente que mais cedo ou mais tarde vão me matar, como dizem em relação ao Padre Luiz Couto.

E a gente fica num lugar desses. Quando vou comprar pão, me deparo com um pistoleiro na minha frente, integrante de grupo de extermínio que não tem, por mais que os fatos mostrem, não tem procedimento, não tem nada apurado em relação àquela pessoa, porque as pessoas se omitem de fazer o seu mister. A gente vai comprar um pão na esquina, se encontra com um pistoleiro na esquina, armado. As pessoas andam armadas acintosamente, com pistola 380, mostrando no bolso da calça jeans, e não é feito nada, não é apreendida a arma, não é feito nada.

Que Estado é esse?

 

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