Assinada em Londres por mais de 30 organizações internacionais, a Declaração de Shoreditch pede que as Nações Unidas proíbam a fabricação e comércio de equipamentos de segurança que submetem as vítimas a uma situação cruel, além da restrição do uso de armas menos letais.
Por Emily Almeida | Justiça Global
A Justiça Global e mais de 30 organizações de vários países se uniram para pedir aos organismos internacionais um Tratado de Comércio Livre de Tortura. Na declaração assinada em Londres na última semana, o grupo solicita que seja proibida a fabricação e o comércio de equipamentos inerentemente abusivos, como bastões com pontas e dispositivos de choque elétrico usados no corpo.
As organizações também reivindicam a regulamentação com base nos direitos humanos do comércio de equipamentos para repressão que são legalizados, como spray de pimenta, balas de borracha, cassetetes e algemas. Atualmente, existem tratados internacionais de comércio de armas letais. Mas não há iniciativas semelhantes para equipamentos e armas menos letais.
O documento, nomeado de Declaração de Shoreditch (em referência ao local onde foi assinado, no Reino Unido), defende que alguns equipamentos que são cruéis e degradantes por natureza devem ser totalmente banidos; e também defende uma regulamentação mais rigorosa do comércio de dispositivos que facilmente podem ter aplicação abusiva.
“Uma proibição global legalmente vinculante e um regime de controle comercial focado nos direitos humanos para equipamentos de aplicação da lei devem ser estabelecidos para ajudar a prevenir a tortura e outros maus-tratos e combater o abuso policial”, diz a declaração. Além dos danos físicos, os graves traumas físicos e psicológicos causados às vítimas são incontáveis.
O advogado e coordenador de Justiça Internacional da Justiça Global, Eduardo Baker, esteve em Londres para discutir com as demais organizações as possibilidades de tirar do papel a aprovação do tratado. “Podemos escutar as experiências da aprovação de outros tratados e, em todos os casos, a atuação das organizações de direitos humanos foi fundamental”.
Enquanto lutamos pela garantia de direitos humanos, o fim dos atos de tortura ou outros maus-tratos e a violência policial, conforme preconiza o direito internacional, empresas têm lucrado com o comércio de dispositivos usados para causar sofrimento e, sobretudo, para intimidar, reprimir e punir tanto manifestantes e defensores de direitos humanos, quanto pessoas em privação de liberdade.
A Justiça Global tem monitorado o uso desse tipo de equipamento no Brasil, sobretudo em abordagens policiais violentas, principalmente contra a população negra e das periferias, em unidades de privação de liberdade e em manifestações.
“A tortura é algo tão enraizada na sociedade brasileira que conseguimos produzir mortes terríveis com armamentos chamados de «não letal». Mesmo instrumentos como algemas são usados por agentes de Estado para produzir dor e sofrimento”, comenta a assistente social e coordenadora do Programa de Violência Institucional e Segurança Pública da Justiça Global, Monique Cruz.
Lançado em setembro de 2021, o relatório “A fabricação, comércio e regulamentação de armas e equipamentos de segurança no Brasil”, produzido pela Fundação de Pesquisa Ômega, do Reino Unido, com o apoio da Justiça Global e do Instituto Sou da Paz, evidenciou a utilização de equipamentos para controle de multidões, em locais de detenção ou como instrumentos de tortura de: irritantes químicos (como as bombas de gás lacrimogêneo), armas de eletrochoque, armas de impacto cinético (bastões, porretes, cassetetes), projetos de impacto cinético (balas de borracha) e instrumento de contenção (algemas), além de armas de fogo e munições reais e granadas de efeito moral.
Abordagens policiais
Maioria entre os abordados pela polícia, os jovens negros brasileiros se veem frequentemente ameaçados pela tortura motivada por racismo. Enquanto oito em cada 10 pessoas negras já foram abordadas, dois em cada 10 brancos se lembram de ter passado pelo procedimento, aponta pesquisa do Instituto de Direito de Defesa (IDDD).
Essas abordagens são ainda mais violentas contra a população negra. O uso do cassetete e mesmo do gás lacrimogêneo tem sido umas das estratégias da continuidade na negação de dignidade à população negra. O assassinato de Genivaldo dos Santos, em Sergipe, no ano passado, por policiais rodoviários, foi um caso que ganhou notoriedade entre muitos que continuam a ocorrer nas esquinas e confins brasileiros. Não são poucas as mães que passam anos procurando seus filhos desaparecidos após serem abordados pela Polícia, como foi o caso de Carlos Eduardo Nascimento em dezembro de 2019, na periferia de Jundiaí (SP).
Unidades de privação de liberdade
Na véspera da visita ao Brasil de uma delegação do Subcomitê da ONU para a Prevenção da Tortura a locais de privação de liberdade, a repórter Solange Azevedo observou: “Duas décadas e meia depois do fim da ditadura militar (1964-1985), o Brasil não está livre da tortura – uma das pragas que marcaram o regime. Sevícias como pressão psicológica, choques, espancamentos, violência sexual e assassinatos ainda fazem parte do cotidiano de delegacias, batalhões da PM, presídios e unidades para adolescentes”.
Na nota técnica sobre a regulamentação do uso da força no Sistema Socioeducativo e no Sistema Prisional no Brasil publicada em 2021, a Justiça Global e a Ômega destacam que, apesar dos esforços de incorporação de alguns parâmetros internacionais em normas internas, a regulação normativa interna sobre o uso da força nos espaços de privação de liberdade ainda está distante dos parâmetros internacionais consolidados pelos organismos internacionais.
Na Unidade Socioeducativa de Internação, localizada em Cariacica, no Espírito Santo, por exemplo, adolescentes são alvos constantes do uso de spray de gengibre disparado contra seus olhos como forma de proporcionar dor nos adolescentes. Além disso, já foram denunciados uso abusivo de bombas de gás em espaços confinados e outros instrumentos como algemas, que impõem dor e deixam marcas permanentes no corpo.
“A legislação brasileira permite expressa ou implicitamente o uso de equipamentos vedados ou não recomendados pelas normas internacionais, assim como o emprego de equipamentos não proibidos, mas em situações nas quais não se recomenda seu emprego”, diz o documento.
A Pastoral Carcerária sistematizou mais de 324 casos de tortura no sistema prisional de 2014 a 2020. No “Relatório: A pandemia da tortura no cárcere – 2020”, a organização salientou os agravantes impostos às pessoas durante o período mais intenso de Covid-19.
Repressão em protestos
O uso de balas de borracha e gás lacrimogêneo têm sido constantes na contenção de manifestações em vários países. E no Brasil, não é diferente. Um caso marcante é o do fotógrafo Sérgio Andrade da Silva, que ficou parcialmente cego ao ser atingido no olho por um policial quando cobria os protestos de 2013. A repórter Giuliana Vallone, então na Folha de São Paulo, chegou a ficar internada depois de ter sido ferida por uma bala de borracha, também nas Jornadas de Junho de 2013.
Mesmo não entrando no corpo da vítima, os projéteis revestidos de borracha causam fortes hematomas e dores. A regra atual é que a munição seja usada a até 20 metros de distância e seja apontada apenas da cintura para baixo. Mas os casos acima comprovam que a recomendação frequentemente não é seguida.
Negociações em andamento
A Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou em maio de 2022 uma resolução que cria um grupo de especialistas para discutir o assunto, para o qual o Brasil votou a favor. Mas até o momento não houve nenhuma ação concreta.
Uma publicação da Anistia Internacional faz um levantamento dos principais elementos necessários para a discussão e a operacionalização de um tratado internacional do tipo.
Em parceria com a Fundação de Pesquisa Ômega, a organização também apoiou a investigação que catalogou 188 incidentes em que agentes da lei usaram indevidamente armas de impacto, como bastões.
*Descrição da foto: Um grupo de pessoas segura uma faixa onde se lê «We demand a Torture-Free Trade Treaty. Take torture out of protest». O grupo está numa rua de Londes onde tem um letreiro lumisono com o texto «Humanity Wins».
Confira a lista das organizações signatária da Declaração de Shoreditch:
Centro Africano de Tratamento e Reabilitação de Vítimas de Tortura (ACTV)
Fórum Africano de Supervisão Civil de Policiamento (APCOF)
União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU)
Anistia Internacional
Artigo 36
Aliança da Ásia Contra a Tortura
Associação para a Prevenção da Tortura (APT)
Centro de Estudos Jurídicos e Sociais (CELS)
Centro de Atendimento a Vítimas de Tortura (CVT)
Centro de Estudos de Violência e Reconciliação (CSVR)
Comissão Mexicana de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos AC
Dejusticia – Centro de Estudos de Direito, Justiça e Sociedade
FIACAT (Federação Internacional de Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura)
Liberdade da Tortura
Clínica Internacional de Direitos Humanos da Escola de Direito de Harvard
INCLO (Rede Internacional de Organizações de Liberdades Civis)
Instituto de Direitos Humanos da International Bar Association
IRCT – Conselho Internacional de Reabilitação de Vítimas de Tortura
Irdia – Centro de Direitos Humanos
Conselho Irlandês para as Liberdades Civis
Fundação Jiyan para os Direitos Humanos
Justiça Global
Comissão de Direitos Humanos do Quênia
KONTRAS
O Centro de Recursos Jurídicos – África do Sul
Observatório Ciudadano, Chile
OMCT (Organização Mundial Contra a Tortura)
Fundação de Pesquisa Ômega
PAX
A Aliança Filipina de Defensores dos Direitos Humanos
O Comitê Público Contra a Tortura em Israel (PCATI)
REPARAÇÃO
Detentos da Força-Tarefa das Filipinas (TFDP)
ONG Temblores
Liga Internacional das Mulheres pela Paz e Liberdade (WILPF) – Reino Unido
Advogados de Direitos Humanos do Zimbábue