Ele tinha apenas dois anos quando foi atingido durante uma ação policial em Acari, Zona Norte do Rio.
Por Emily Almeida
Maicon da Silva Souza hoje seria um jovem adulto, talvez formado, talvez um grande artista, um importante trabalhador mas, sobretudo, amado pela família. Esse infinito de possibilidades foi encerrado pela violência policial nas favelas mais uma vez. Seu pai, José Luiz Faria da Silva, 62, continua a exigir a responsabilização pelo crime que tirou a vida do filho quando este tinha pouco mais de dois anos, na cidade do Rio de Janeiro, em Acari, Zona Norte da cidade. O caso, que completa 26 anos no dia 15 de abril, foi arquivado pela justiça brasileira e agora aguarda avaliação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
No dia do fato, o pai do menino contou que estava tudo tranquilo: “A mãe do Maicon costurava, eu lavava a bicicleta, o Maicon estava brincando no quintal e estava tranquilo na comunidade. Não era tão tenso na época como é hoje. De repente, houve um tiroteio”. A criança foi atingida fatalmente. O argumento dos policiais militares foi de que o caso ocorreu em meio a uma perseguição. “Maldita hora em que entrei nessa favela”, José ouviu do soldado no segundo em que se deparou com o filho atingido. A mesma declaração foi usada sobre outras mortes e o ferimento causado a outra criança que brincava com Maicon nesse episódio.
Mas as violações não cessaram no luto e, hoje, a família protesta contra a prescrição do crime após graves falhas processuais. A perícia ocorreu muito tempo depois e só diante da mobilização da família, de movimentos sociais e de organizações de direitos humanos; o fragmento do projétil foi perdido e as autoridades justificaram o encerramento do caso pelo impasse sobre qual juízo deveria ser levado. Nenhum dos policiais foi responsabilizado pelo assassinato da criança. Ao contrário, foram premiados com uma gratificação pelos supostos atos de bravura por parte de policiais. Por conta da alta letalidade policial, ficou conhecida como «gratificação faroeste».
Desde então, José Luiz têm enfrentado ano a ano as múltiplas negligências estatais e mais uma vez acampa em frente ao Ministério Público pela reabertura do processo. “O que mais venho buscando, na verdade, é a retratação do Estado”, declara.
“O Estado não fez nada! A perícia não foi feita corretamente. O processo arquivou. A nossa família não foi amparada. A pensão à mãe dele foi recusada. Nenhuma retratação foi feita.”, protesta José Luiz.
Para a família de Maicon, a preocupação uns com os outros se tornou tensão permanente. De origem nordestina, a mãe de Maicon, Maria da Penha de Souza, sofre até hoje os impactos na saúde mental e emocional e não mais consegue acompanhar as manifestações. José também relaciona como resultado suas cardiopatias às tensões que desdobraram do crime.
Mortes têm cor e território
De lá para cá, houve uma piora na situação segurança pública dentro das favelas e periferias da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Com o aumento da militarização por parte do Estado dentro desses territórios, dados apontam que mais de cem crianças foram baleadas, incluindo bebês, de julho de 2016 a março de 2022 segundo o Instituto Fogo Cruzado. Mais de 30 morreram vítimas da violência armada. Como Maicon, a maioria dessas crianças eram negras.
A pesquisadora da Justiça Global Monique Cruz comenta que, apesar da gravidade, o crime contra Maicon, infelizmente, não é uma exceção. “O episódio materializa o modus operandi no Brasil, não somente no que diz respeito à atuação das polícias, mas do judiciário como um todo. A desumanização que funda as relações sociais no país permite que crianças negras, vivendo em territórios negros, não tenham suas vidas valorizadas e protegidas como determina a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069 de 1990) e diversos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro», avalia.
Conheça mais sobre esse debate na publicação da Justiça Global “Auto de resistência: a omissão que mata” (2019), escrito pela jornalista Gizele Martins.