A pesquisadora da Justiça Global Alice De Marchi explica as políticas voltadas para crianças e adolescentes formuladas dentro da chamada «doutrina de proteção integral», que levou a mudanças profundas como a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ela também lembra que, em períodos como esse, no qual setores conservadores da sociedade defendem a redução da maioridade penal, precisamos defender as conquistas dessa doutrina e das leis nela baseada, assim como » fazer um outro uso de seus dizeres, e tomá-la como uma lógica que atravesse as nossas práticas». Leia abaixo:
Doutrina da Proteção Integral
É quase impossível falar de doutrina da proteção integral sem contrapô-la à doutrina da situação irregular. Isso porque essas duas doutrinas – ou teorias – do campo do Direito da Criança e do Adolescente são referências, ao mesmo tempo antagônicas e fundamentais, para entender como a legislação e as práticas nesse campo funcionaram (e ainda funcionam) no Brasil ao longo da história.
Se o paradigma da situação irregular, que vigorou até o final do século XX no país, é caracterizado por um viés individualista, punitivista, assistencialista e pela criação de duas infâncias desiguais, a teoria da proteção integral se constitui como impulso para profundas mudanças no ordenamento jurídico, materializando-se em marcos legais como a Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, de 1990. Tais transformações deveriam se estender, em tese, às políticas públicas e às formas mais cotidianas de lidar com o público em questão. Com a nova doutrina, o termo “menor” sai de cena, e todas as pessoas com até 18 anos de idade passam a ser referidas da mesma forma: como “crianças” e “adolescentes”. As normas devem agora concebê-las como cidadãos de direito, ainda que sujeitos à proteção prioritária, já que são seres humanos “em desenvolvimento”. A proteção deve ser “integral” na medida em que diversas esferas devem promover e garantir tais direitos: a família, o poder público e a sociedade como um todo são responsáveis por esses sujeitos e sua saúde, educação, moradia, esporte, lazer, convivência comunitária, liberdade.
Na letra fria da lei, tais modificações são de extrema importância, pois submetem o conjunto de normas e políticas públicas desse campo a um marco dos direitos humanos, enfatizando a promoção de direitos e a prevenção a condições de violência, precarização e vulnerabilização. Mas será que isso foi suficiente para mudar de fato nossas práticas e atitudes para com crianças e adolescentes no Brasil?
Nem tanto.
Antes de mais nada, é preciso admitir que as leis são apenas mais um tipo de força dentro de um campo em constante embate. Elas devem ser situadas numa dimensão maior do que a jurídica ou institucional e compreendidas em articulação com processos históricos, políticos e sociais.
Assim, a doutrina da proteção integral e sua legislação decorrente são construções e conquistas de movimentos coletivos que por anos lutaram para vê-las implementadas e se constituem como estratégicos instrumentos de afirmação de cuidado, dignidade, liberdade. Mas não podemos esquecer que, no Brasil, cerca de 300 anos de escravatura e outros 63 anos de Código de Menores, aliados a teorias higienistas, racistas, eugênicas e intimistas das ciências humanas, influenciaram significativamente a intervenção de um sem número de profissionais para com crianças e adolescentes pobres, bem como a maneira da sociedade em geral percebê-los (COIMBRA e NASCIMENTO, 2003). Não é de surpreender que ainda assistamos, nos dias de hoje, a ações de recolhimento compulsório de crianças e adolescentes em situação de rua, a procedimentos inquisitórios violentos, a insistentes clamores pela diminuição da maioridade penal, visando mais institucionalização, criminalização e prisão. Agora, sinistramente em nome da “proteção”: novos discursos, velhas práticas (NASCIMENTO e SCHEINVAR, 2013).
Se queremos que a doutrina da proteção integral se estabeleça é necessário fazer um outro uso de seus dizeres, e tomá-la como uma lógica que atravesse as nossas práticas. Fazer dela não só uma reivindicação constante pela efetivação de mais direitos – atentando sempre ao fato de que eles podem significar mais tutela –, mas também algo que se traduza realmente em práticas mais libertárias, que desviem das produções e naturalizações históricas referidas e possibilitem a invenção de outras infâncias e adolescências. É preciso trazer a letra da lei ao rés do chão, experimentar seus enunciados no cotidiano, e não esperar que a dimensão jurídica transforme as nossas vidas por inteiro. Podemos nós mesmos ser também agentes de transformação e criação desse mundo outro: esse sim seria um outro uso da doutrina da proteção integral.
Todo dia há quem se esforce nesse sentido, enfrentando dificuldades nos diferentes serviços das políticas públicas e noutros tantos espaços. É notável a ausência de debate sobre os modos como a proteção à infância e à juventude é operada. No entanto, como se vê, pensar e debater a atitude ético-política que perpassa nossas práticas é fundamental para que a proteção integral possa prevalecer sobre a situação irregular – não só como doutrina abstrata, mas como efetividade cotidiana.
Alice De Marchi
Este texto foi originalmente publicado no livro «Medida socioeducativa: entre A & Z», organizado por Gislei Domingas Romanzini Lazzarotto et al. Publicado pela Editora da UFRGS, em 2014.